Uma vida sem doce é “um cenário totalmente irreal” 1403

Mas pode-se encontrar alternativas ao açúcar simples. Atualmente, e numa realidade onde há um consumo excessivo em Portugal, as alegações nutricionais podem ajudar a perceber se determinado produto tem açúcar. Contudo, «é importante ler a lista dos ingredientes», pois «só assim podemos ter a certeza do que está a ser consumido».

Em Portugal, de acordo com o documento Redução do Consumo de Açúcar em Portugal: Evidência que Justifica Ação, do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), «os hábitos alimentares inadequados (19%) surgem como o fator de risco que mais contribui para o total de anos de vida saudável perdidos pela população portuguesa (…).Os hábitos alimentares inadequados incluem a ingestão excessiva de açúcares simples, entendendo-se por açúcar simples (free sugar) e segundo a definição da [Organização Mundial da Saúde] OMS os mono e dissacáridos adicionados aos alimentos e bebidas pela indústria alimentar, pelos manipuladores de alimentos ou pelos consumidores e os açúcares naturalmente presentes no mel, xaropes, sumos de fruta e concentrados de sumo de fruta».

Dados do último Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF) de 2015-2016, revelaram que 24,3% dos portugueses apresentam um consumo de açúcares livres superior a 10% do valor energético total, ou seja, «um consumo superior ao valor máximo recomendado pela OMS, sendo esta percentagem de inadequação superior para as crianças (40,7%) e adolescentes (48,7%)», lê-se no documento Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável 2022-2030 (que foi submetido a consulta pública).

Assim sendo «quando falamos nas consequências do elevado consumo de açúcar no organismo, estamos a referir-nos ao “açúcar simples”», declara a nutricionista Catarina Sofia Correia, especificando que «um consumo superior a 10% do total da ingestão energética diária está associado a uma série de consequências para a saúde durante as diferentes fases da vida, sendo que as crianças poderão ser o grupo mais vulnerável, já que têm uma preferência mais forte por alimentos doces; e exposições repetidas a alimentos açucarados podem habituar crianças pequenas a um hábito duradouro de consumir alimentos demasiado doces».

Podemos confiar nas alegações?

A indústria alimentar tem vindo a adaptar os seus produtos, reduzindo ou retirando por completo o teor de açúcar da sua constituição. Desde 2006 que as alegações foram harmonizadas numa legislação dedicada ao tema, o Regulamento CE nº1924/2006 que, «além de definir o que são as alegações nutricionais e de saúde, estabelece quais as alegações que podem ser utilizadas e as regras que os operadores têm de cumprir», refere Mayumi Thaís Delgado. Neste sentido, a nutrition and research area manager na MC Sonae e professora convidada em Universidades Portuguesas especifica que «as alegações “baixo teor de açúcares”, “sem adição de açúcares” e “sem açúcares” são alegações nutricionais e cada uma tem critérios bem definidos. Por exemplo, o “sem adição de açúcares” não é o mesmo que o “sem açúcares”, já que poderá ter açúcares naturalmente presentes no alimento.

Especificamente falando, segundo o regulamento em causa, o uso de «“baixo teor de açúcar” ou “light” acontece quando o produto não contiver mais de 5 g de açúcares por 100 g para os sólidos ou de 2,5 g de açúcares por 100 ml para os líquidos. “Sem açúcares”, quando o produto não contiver mais de 0,5 g de açúcares por 100 g ou 100 ml; e “sem adição de açúcares”, quando o produto não contiver quaisquer monossacáridos ou dissacáridos adicionados, nem qualquer outro alimento utilizado pelas suas propriedades edulcorantes. Caso os açúcares estejam naturalmente presentes no alimento, o rótulo deve também ostentar a seguinte indicação: “contém açúcares naturalmente presentes”», especifica Catarina Sofia Correia, salientando que «como podemos verificar, não é apenas por estar na embalagem que não tem açúcar que este não esteja presente».

Não obstante, a partir do momento que «existe legislação temos de crer que os operadores/marcas estão a cumprir com a mesma», refere Mayumi Thaís Delgado, acrescentando que, além disso, «está previsto nesta legislação, e no Regulamento CE nº 1169/2011, que os Estados-membros efetuem controlos oficiais a fim de assegurar o cumprimento da informação que é prestada ao consumidor».

É suficiente “ler” as alegações?

O objetivo das alegações é «facilitar uma escolha mais consciente por parte do consumidor, que sabemos que a maioria não tem literacia suficiente para interpretar a restante rotulagem», sublinha Mayumi Thaís Delgado. Porém, saber interpretar rótulos é essencial, daí que, no momento da consulta, Catarina Sofia Correia costume «fazer o reforço de que é importante ler a lista dos ingredientes que está descrita no rótulo de cada alimento embalado. Só assim podemos ter a certeza do que está a ser consumido».

Cabe a cada operador «fazer uma análise do seu produto e verificar se faz sentido colocar cada alegação. Até à data, aguarda-se que a Comissão Europeia publique os perfis nutricionais dos produtos que podem ostentar uma alegação», sendo que «enquanto nutricionista, não me faz sentido colocar uma alegação num produto totalmente desequilibrado nutricionalmente», revela Mayumi Thaís Delgado.

A utilização destas alegações pode ainda ser particularmente importante em determinadas faixas etárias. «Na infância e adolescência o controlo do consumo de açúcares é fundamental para garantirmos um crescimento saudável. Estas alegações podem ser úteis para essa interpretação», destaca a nutricionista, reiterando que «não dispensam a leitura da restante rotulagem, nomeadamente dos ingredientes e da tabela da informação nutricional. Em condições específicas de saúde, como na diabetes tipo 2, estas alegações em particular, podem também ser úteis para ajudar na escolha dos produtos na prateleira».

Em suma, «a avaliação de um produto deve ser feita de forma completa e só com a leitura da lista de ingredientes e com a análise da informação nutricional é que se consegue fazer uma escolha consciente», aponta Mayumi Thaís Delgado. Deste modo, ainda de acordo com a nutricionista, «é necessário perceber se o produto vai responder às minhas necessidades e expectativas nutricionais. É só o açúcar que me preocupa ou procuro também o equilíbrio nutricional do produto como um todo? Que quantidade de gordura tem? É natural ou adicionada? E de sal? Será que retiraram os açúcares, mas colocaram edulcorantes? Quero fazer essa troca?». Daí que «a escolha de um produto é mais complexa do que só ler as alegações nutricionais», conclui.

Será possível um mundo sem o doce?

«Nunca mais comer nada doce na vida é um cenário totalmente irreal», refere Catarina Sofia Correia. Mas pode-se, contudo, recorrer «aos adoçantes naturais para usar em receitas ou para comer isoladamente e as respetivas recomendações de ingestão diárias, o que não significa que os devemos consumir todos os dias». Deste modo, a nutricionista deixa algumas recomendações em termos da quantidade a usar: fruta, três a cinco porções de 160 g diariamente; mel, uma colher de sopa por dia; tâmaras secas, três a seis por dia; xarope de arroz e de ácer, uma colher de sopa por dia; e alfarroba, sendo que o seu consumo está incluído nas porções de fruta».

Ainda assim, a vida poderá ser “adoçada” de outra maneira: «mantendo um estilo de vida ativo e tranquilo. Por vezes basta substituir “aquele doce” por uma atividade de que gostemos e que nos deixe mais felizes, como meditar, passear pela praia ou até mesmo ler um livro», elucida a nutricionista. Sendo que «caso os “desejos” doces continuem, costumo aconselhar a fazer-se uma pausa e entender o “porquê” desse desejo estar a acontecer naquele preciso momento».

Podemos recorrer aos edulcorantes?

Os edulcorantes, vulgarmente conhecidos como adoçantes, «utilizados em Portugal são permitidos por lei e a sua adição aos alimentos cumpre rigorosos critérios», declara Mayumi Thaís Delgado. Contudo, dado que tem havido uma procura por produtos com baixo valor energético, principalmente com baixo teor em açúcares ou sem açúcares, existe uma maior oferta de produtos com edulcorantes». Todavia, «e tendo em conta que o consumo excessivo de alguns parece contribuir para o desenvolvimento de alguns tipos de cancro (acessulfame K, sacarina, aspartame e ciclamato), pelo princípio da precaução, são já muitas marcas que optam por reduzir ou até eliminar a sua utilização, utilizando outros como a stevia (glicosídeos de esteviol) ou a sucralose».

Catarina Sofia Correia reforça que estudos comprovam que o consumo de edulcorantes artificiais poderá produzir outros efeitos, além do aparecimento de cancro, como «interferir com o metabolismo, visto que quando provamos algo doce, o nosso cérebro recebe uma mensagem para produzir insulina como resposta à quantidade glicemia e as calorias que foram ingeridas. No entanto, quando consome adoçantes artificiais não há calorias. Apesar de ser esta a razão pela qual são utilizados, o seu consumo faz com que a insulina seja produzida em vão e fique em circulação. Quando este fenómeno acontece com frequência ganhamos resistência à insulina, ou seja, as células deixam de responder à ação desta hormona, a glicémia sobe e aumenta o risco de problemas como a diabetes». Interferem, igualmente, com a saciedade e, assim sendo, segundo a nutricionista, «alguns adoçantes artificiais não só atrasam o pico de açúcar no sangue até uma hora após a refeição como ainda os pioram. Foi demonstrado com a stevia e aspartame».

E, por fim, podem afetar a saúde intestinal: «os efeitos metabólicos adversos dos adoçantes artificiais correlacionam-se com alterações pronunciadas no microbioma, os quais ocorrem ao fim de uma semana de consumo diário. Estas alterações poderão aumentar o risco de desenvolvimento da doença de Crohn», revela Catarina Sofia Correia.

Não obstante, para Mayumi Thaís Delgado, «a utilização de edulcorantes não deve ser descartada, pois em algumas patologias pode ser interessante o seu uso para aumentar o leque de produtos que este consumidor pode escolher, por exemplo, no caso de diabetes». Porém, em contrapartida, alerta que «enquanto nutricionista, e mãe, não gosto de recomendar produtos com edulcorantes às crianças, prefiro simplesmente limitar o consumo de produtos açucarados».

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A fruta e o leite

A definição de “açúcar simples” inclui aqueles que se encontram naturalmente presentes nos alimentos, nomeadamente na fruta (frutose) e no leite e seus derivados (lactose). No que diz respeito à fruta, «estudos indicam que não só é inócua, como é benéfica para a saúde cardiovascular», explica Catarina Sofia Correia. Este fenómeno explica-se devido «à fibra solúvel que abranda a velocidade do esvaziamento do estômago como também à presença de moléculas como os polifenóis que bloqueiam o transporte de açúcares pelo intestino, abrandando a sua absorção, amortecendo assim o pico de glicémia (açúcar no sangue) em alimentos que possam o possam provocar (como o caso de pão branco)». O mesmo, de acordo com a nutricionista, «se verifica com o leite e derivados devido à presença simultânea de gordura, nutriente que atrasa a absorção do açúcar. É por esta razão que nenhuma das recomendações para diminuir o consumo de açúcares adicionados se aplica à fruta e ao leite e seus derivados».

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O que faz um consumo excessivo de açúcar

Catarina Sofia Correia aponta algumas das consequências:

– Doenças crónicas: «a frutose (a molécula que torna o açúcar doce), sendo metabolizada pelo fígado, em excesso, poderá contribuir para doenças como o “fígado gordo” que, por sua vez, aumenta o risco de doenças crónicas tais como doenças cardíacas, excesso de peso/obesidade e resistência à insulina.»

– Inflamação: «o consumo elevado de açúcar promove um desequilíbrio hormonal no organismo levando ao aumento de produção de hormonas, como testosterona e cortisol, que promovem a inflamação e produção de oleosidade na pele que, consequentemente, contribuem, por exemplo, para o desenvolvimento de acne.»

– Envelhecimento precoce: «o consumo de açúcar promove a produção de radicais livres, responsáveis pelos danos oxidativos das células e pela quebra do colagénio necessário para a elasticidade e flexibilidade da pele, levando ao aparecimento de mais rugas.»

– Cancro: «o excesso de peso, a resistência à insulina e a inflamação são fatores de risco para o aparecimento de diversos tipos de cancro, como da próstata e do esófago. No entanto são necessários mais estudos neste sentido.»

– Alterações neurológicas e emocionais: «um aumento do açúcar no sangue poderá levar a uma inflamação do cérebro que, consequentemente, diminui a produção de uma proteína que contribui para a adaptação do cérebro ao stresse. Por esta razão, quanto maior o consumo de açúcar, maior o risco de depressão. Por outro lado, dietas com elevados consumos de açúcar poderão levar ao anormal funcionamento e desenvolvimento das células cerebrais, estando associado a um risco aumentado de desenvolvimento de doenças como a doença de Alzheimer em idades mais avançadas e a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA) em crianças em idade escolar.»

– Cáries: «existe uma relação direta entre a ingestão de açúcares simples e a incidência de cáries dentárias.»

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA VIVER SAUDÁVEL #82 (MARÇO-ABRIL 2023)