Com a chegada de mais uma quadra natalícia, regressam à mesa das casas portuguesas algumas das iguarias típicas desta época. Por todo o país, Natal é sinónimo de azevias, filhós, coscorões, rabanadas, broas diversas e, claro, o incontornável bolo-rei. Mas há ainda as receitas locais, como os sonhos de arroz de Alpiarça, os borrachos (ou bufas) do Minho, as filhós de canudo do Algarve (com calda de mel) ou a aletria de Bragança, preparada sem leite. E se aos doces festivos somarmos os pratos típicos da consoada ou do almoço de Natal, que vão do peru (ou capão, nalgumas zonas) ao polvo, passando pelo inevitável bacalhau, é fácil perceber a riqueza gastronómica e cultural do nosso país. Seria por isso expectável que, com tanta variedade, os portugueses precisassem de muitos Natais para provar tudo aquilo que de típico se come apenas uma vez por ano por esse país fora. Mas será isso que observamos?
Com cada vez mais gente a viver nas cidades e uma população residente cada vez mais diversa, os folhetos dos supermercados são um bom barómetro das preferências dos portugueses. Por isso mesmo, é interessante ver que produtos surgem destacados por esta altura nas maiores cadeias de retalho alimentar. De há uns anos para cá, panetones, biscoitos de gengibre ou bombons de maçapão foram ganhando protagonismo ao lado dos tradicionais frutos secos e broas castelares. Também o pernil de porco, típico desta altura do ano nalgumas zonas da América do Sul, vai espreitando entre o peru e o bacalhau. Num mundo cada vez mais globalizado, estarão as tradições de Natal mais profundas condenadas ao esquecimento? Quando falecerem as avós, guardiãs de receitas e histórias de um Portugal não muito distante, haverá alguém que saiba a diferença entre sonhos e filhós? Ficará alguém para preparar as diferentes azevias de grão, abóbora ou batata doce?
A mudança é parte da História, que está em permanente evolução. Mesmo os pratos tradicionais de Natal que hoje conhecemos, são já mudanças das festivas receitas judaico-cristãs que se comeram em Portugal durante séculos, como tão bem nos retrata o chef Luís Lavrador no seu livro “Ao sabor da Bíblia”. Os Descobrimentos trouxeram novos sabores para a mesa portuguesa, como o peru e o tomate, da mesma forma que a globalização da indústria alimentar e das cadeias de retalho nos trouxe as caixas de chocolates e a figura bonacheirona do Pai Natal. Também as atuais preocupações com a alimentação saudável, o peso excessivo e doenças associadas trouxeram mudanças à tradição gastronómica, natalícia e não só. Hoje, são frequentes as receitas de “bolo-rei sem açúcar”, “fritos de Natal no forno” ou “arroz doce vegan”, espécie de “blasfémias gastronómicas” para alguns, mas uma forma de ir mantendo a tradição para outros.
Provavelmente, caminhamos para uma dieta cada vez mais global, onde a otimização das cadeias de produção e distribuição tornam determinados alimentos cada vez mais acessíveis e “competitivos”, retirando espaço a culturas locais e tradicionais, menos rentáveis. Também as preocupações nutricionais encontram refúgio em recomendações alimentares cada vez mais similares em todo o mundo, com as dietas para perda de peso a seguir orientações globais que incluem alimentos disponíveis na maioria dos países. E mesmo as preocupações com a sustentabilidade, que poderiam pôr-nos a comer mais produtos locais, parecem ganhar forma em alternativas vegetais apresentadas como “hamburgers” ou panados. É neste contexto que os nutricionistas, agente basilar na formação de hábitos alimentares, têm o desafio de aplicar o seu engenho e arte para conciliar as diferentes dimensões da alimentação. O equilíbrio nutricional, o prazer de comer e as questões sociais e ambientais são determinantes nas recomendações alimentares que definimos. Por isso, os nutricionistas portugueses devem ter um papel ativo no conhecimento das tradições gastronómicas nacionais e, desde que devidamente enquadradas, devem estimular a sua inclusão nas recomendações nutricionais que estabelecem. Dada a enorme riqueza gastronómica portuguesa e a quantidade de tempo necessária para a estudar em detalhe, que melhor altura para começar, se não o Natal?
Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição