Tirania da saúde 1755

A notícia chocou uma boa parte da Austrália e os ecos espalharam-se um pouco por todo o Mundo: uma família do Bangladesh a residir na Austrália há vários anos viu a reemissão do seu visto de permanência negado, devido a uma ligeira paralisia cerebral diagnosticada ao filho de 5 anos. Adyan nasceu já na Austrália, aparentemente saudável, mas começou a manifestar dificuldades a subir escadas ou rampas. Ainda assim, tem razoável autonomia e ainda não revelou dificuldades de aprendizagem. Então, por que razão pode esta família vir a ser deportada, para mais considerando que os pais são profissionais altamente qualificados (um Doutorado e uma médica)? A razão é simples: a lei australiana prevê que os problemas de saúde desta criança podem tornar-se um fardo a suportar por todos os contribuintes australianos. O caso, aliás, não é inédito: no passado, já foram deportadas da Austrália famílias de imigrantes com filhos que apresentavam problemas de saúde, cujos tratamentos implicavam custos continuados ao sistema de saúde.

É impossível ficar indiferente a este caso e não pensar naquilo que um número crescente de vozes advoga para o nosso Serviço Nacional de Saúde. De facto, são vários aqueles que defendem penalizações para fumadores, obesos ou portadores de doenças atribuíveis aos comportamentos individuais, queixando-se do “fardo” que a obesidade e as doenças associadas representam para o orçamento de Estado. Agravamento das taxas moderadoras, pagamento integral de tratamentos ou redução na comparticipação de medicamentos são algumas das ideias para forçar os obesos a ter mais cuidado com o seu peso. Mas, pensemos um pouco nas consequências de tais políticas: desde logo, como se faria a avaliação dos que devem ser penalizados: pelo IMC? Pelo perímetro da cintura? E como se distinguiram aqueles que são negligentes nos seus hábitos alimentares daqueles que, por ignorância ou falta de recursos, comem “mal” com consequências desastrosas no seu peso e saúde? Além disso, são precisamente as pessoas com menos recursos e educação, aquelas que mais sofrem de obesidade, pelo que penalizá-las iria tornar a sua vida ainda mais difícil. Por fim, é preciso ainda considerar a minoria de casos de obesidade que resultam de causas não dependentes do indivíduo.

Parece claro que, quer pelo respeito das liberdades individuais, quer por questões de eficiência, seria preferível investir numa verdadeira e eficaz educação alimentar das populações. A identificação precoce das situações de excesso de peso, o acompanhamento de proximidade das pessoas referenciadas ou o trabalho de educação alimentar na comunidade são ferramentas mais eficazes que a simples penalização financeira dos obesos. E a contratação de nutricionistas para os cuidados primários de saúde é muito menos dispendiosa que o tratamento da obesidade e suas complicações. No fundo, é preciso que se entenda, de uma vez por todas, que temos de optar pela educação para a prevenção, em lugar da penalização dos que já precisam de tratamento. Isto pode ser provado com números e tem de ser eficazmente aplicado num plano de ação a médio prazo.

Adyan, aos olhos da lei australiana, é um peso para todos os contribuintes. Os obesos, em Portugal, são olhados como um peso para o SNS. Insistir na penalização das pessoas com obesidade sem sequer trabalhar a sério na prevenção, mais não é que uma perversa forma de “tirania da saúde”, onde, em nome daquilo que é para o nosso bem, se arrecadam receitas para um sistema de saúde pensado sobretudo para tratar, mas que pouco ou nada previne.

Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição