Será o fim do IMC? 1872

Foram publicadas em 2020, no Canadian Medical Association Journal, um conjunto de recomendações sobre a abordagem clínica à obesidade em adultos. Desde então, uma afirmação dos autores tem merecido debate, com alguma polémica à mistura: “O IMC (Índice de Massa Corporal) NÃO é uma ferramenta precisa para identificar problemas de saúde relacionados com a obesidade”. Os autores acrescentam ainda que a obesidade é definida como “uma doença complexa, na qual o excesso ou anormalidade de gordura corporal compromete a saúde”. Para muitos, sobretudo os menos habituados a lidar com pessoas com obesidade, estas guidelines desvalorizam o IMC, ao admitir que existe um conjunto alargado de fatores a ter em consideração na classificação e gestão da obesidade. E uma vez que este trabalho põe algum foco na ideia de que combater a obesidade deve passar por melhorar a saúde e não apenas reduzir peso, houve mesmo quem se apressasse a antever o fim do IMC como ferramenta para diagnóstico da obesidade.

Mas afinal, o que diz o documento? Resumindo, apresenta uma abordagem à obesidade baseada em 5 passos, sendo os dois primeiros aqueles que têm levantado alguma discórdia. O primeiro consiste em recomendar que os profissionais de saúde peçam autorização à pessoa para abordar o tema do seu peso. Os autores argumentam que este procedimento demonstra compaixão e empatia. É certo que existe estigma em torno das pessoas com obesidade, frequentemente vistas como “preguiçosas”, “com pouca força de vontade” ou “desleixadas”. Mas é importante não esquecer que o peso excessivo é um fator de risco importante para vários problemas de saúde e deve, por isso, ser abordado pelos profissionais de saúde que o identifiquem. Ser delicado na abordagem à obesidade é uma coisa; deixar ao critério da pessoa com obesidade se esse é um assunto que deva ser discutido, é outra!

No segundo passo, é sugerido que se avalie a história de cada paciente, centrando a abordagem nos objetivos relevantes para si. Também aqui há quem se interrogue sobre os benefícios deste livre-arbítrio relativamente às metas de saúde que os profissionais de saúde devem estabelecer para pessoas com obesidade. Se não há dúvidas quanto à importância de discutir objetivos com cada pessoa, é igualmente fundamental que esses objetivos sejam realistas nos benefícios de saúde que podem trazer. Da mesma forma que não é razoável exigir a alguém com obesidade mórbida que perca 30 kg em dois ou 3 meses, também não é benéfico dizer-lhe que basta perder um quilo ou dois… Ainda assim, os autores deste trabalho continuam a recomendar que se classifique o IMC e perímetro da cintura, assim como o grau de severidade (Edmonton Obesity Staging System).

Efetivamente, a obesidade é mais do que apenas o IMC, e há outros fatores importantes a considerar no diagnóstico, tratamento e abordagem à pessoa com obesidade. Mas se o peso não é tudo e o IMC tem as suas limitações, que parâmetros devemos utilizar? O peso a perder deve ser uma decisão do profissional de saúde, do paciente ou de ambos? E então, onde está o ponto de corte para dizermos a alguém que tem de se preocupar com o seu peso e fazer alguma coisa para o reduzir? Se é certo que existem estigmas em torno das pessoas com peso excessivo, esta preocupação com o fat-shaming não deve sobrepor-se à necessária atuação dos profissionais em prol da saúde e bem-estar das pessoas com obesidade. Transformar as medidas de combate à obesidade num movimento de discriminação das pessoas “gordas” não é só ridículo: é perigoso, pois impede essas pessoas de terem acesso ao apoio de que necessitam para reduzir peso e ganhar saúde. No final, como os nutricionistas bem sabem, ajudar as pessoas com obesidade a atingir (e manter!) um peso saudável é uma tarefa complexa. Seria, por isso, importante que se reunisse um consenso alargado em torno da definição de obesidade, atendendo às lacunas do modelo atual, mas sem relativizar toda evidência científica acumulada ao longo das últimas décadas.

Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição