Em prol de um contributo concreto para a redução da fome, da pobreza e vulnerabilidade à segurança alimentar e nutricional num dos países mais afetados pelas alterações climáticas, o Programa FRESAN – Fortalecimento da Resiliência e da Segurança Alimentar e Nutricional em Angola, levou Rita Pereira Luís e Isa Viana ao país.
Entre 8 de março e 4 de junho de 2022, em representação da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação (FCNAUP) e da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), as nutricionistas Rita Pereira Luís e Isa Viana, respetivamente, viajaram, sob uma Missão Técnica ao Terreno, às províncias de Cunene, Huíla e Namibe, no sul de Angola. Com o objetivo de apoiar o desenvolvimento, a implementação e a monitorização das atividades de Nutrição FRESAN/Camões I.P, as profissionais recolheram dados sobre práticas alimentares, gastronomia local e alimentos consumidos e produzidos nas três províncias e implementaram diversas atividades, nomeadamente formações para profissionais de saúde das unidades sanitárias locais.
Das experiências, as nutricionistas retiraram o conhecimento necessário para criar a Tabela da Composição de Alimentos do Sul de Angola, a primeira tabela do género a ser desenvolvida no país, e que será útil para os profissionais de saúde locais compreenderem melhor o valor nutricional dos alimentos e das receitas regionais. Em entrevista à VIVER SAUDÁVEL, Rita Pereira Luís faz o balanço de três meses de ação, enquanto explora os vários desafios com que se deparou e perspetiva um regresso ao terreno, uma vez que ainda há muito a fazer.
VIVER SAUDÁVEL – Foram três meses no sul de Angola, a trabalhar perto das populações locais e a recolher informações sobre as localidades. Qual o impacto do Programa FRESAN, o que conseguiu desenvolver e o que compreendeu sobre a realidade da região?
Rita Pereira Luís – Não foi a minha primeira experiência em Angola, já tinha estado anteriormente noutro contexto, na altura a lecionar, portanto foi muito diferente. Agora, no âmbito do programa FRESAN, tive a oportunidade de ter um contacto com a população rural da região do sul de Angola, que é uma população com muitas tradições, muitos hábitos culturais ancestrais. Existem diversos grupos étnicos com tradições e meios de vida e de subsistência bastante diferentes, o que torna a intervenção na região bastante desafiante. Temos grupos étnicos que são exclusivamente pastores, que são transumantes, ou seja, deslocam-se durante o ano inteiro à procura de pasto com o seu gado, e por isso alimentam-se daquilo que vão encontrando ao longo desta deslocação. E temos outros grupos étnicos que não comem peixe ou que evitam consumir ovos ou leite devido a crenças antigas.
Assim, torna-se muito bastante difícil fazermos aqui intervenções do ponto de vista da recomendação alimentar porque o nosso objetivo com o programa FRESAN será sempre mitigar a elevada prevalência de desnutrição numa região onde a escassez de alimentos e água se verifica cada vez mais. Estarmos no terreno permitiu-nos precisamente tomar mais contacto com a realidade destas comunidades rurais, para podermos desenvolver melhores ferramentas para apoiar os técnicos que trabalham com as nossas comunidades, nomeadamente protocolos para profissionais de saúde e materiais de Educação Alimentar e Nutricional adaptados ao contexto. Estes materiais vão por exemplo ser utilizados pelas ONGs subvencionadas pelo programa, que trabalham no terreno, na implementação de Brigadas Móveis e Escolas de Campo Agrícolas.
VS – Quando fala em materiais de Educação Alimentar e Nutricional, a que se refere exatamente?
RPL – Estamos, por exemplo, neste momento a desenvolver uma ferramenta, em formato painel, que agrupa os alimentos em vários grupos com as mesmas características nutricionais, que está adaptado aqui ao contexto alimentar da região do sul de Angola e ilustra os alimentos locais. Temos também em mãos o desenvolvimento de outras ferramentas como, por exemplo, manuais e cartazes, todos desenvolvidos de acordo com aquilo que são as necessidades e fragilidades a nível da saúde e dos profissionais, e também a nível de carências nutricionais da região.
E por outro lado, no âmbito da parceria técnica da FCNAUP e FMUP, estamos também a desenvolver a Tabela de Composição de Alimentos do Sul de Angola para ser mais fácil compreender o valor nutricional dos alimentos que estão disponíveis na região e também do receituário local que, até aqui, ainda não havia sido descrito de forma representativa, nem em livros de receitas. Este material será útil para os profissionais de Angola, quer da área da saúde e da agricultura, mas também a nível internacional.
VS – Com o programa a englobar três províncias, esteve particularmente em que regiões?
RPL – Nós estivemos exatamente nas 3 províncias de intervenção FRESAN, onde visitamos várias comunidades. No entanto, destaco uma comunidade rural no Cunene, onde tivemos uma experiência muito bonita. Demos acompanhamento a uma ONG subvencionada pelo FRESAN/Camões I.P. na implementação de uma demonstração culinária numa Escola de Campo, onde fomos recebidas pela comunidade com uma cantiga tradicional de boas-vindas e podemos acompanhar as mamãs da comunidade a cozinhar os alimentos produzidos localmente.
Deram-nos a conhecer e preparam-nos para provar dois alimentos locais que ainda só conhecíamos através de livros – um deles, semelhante a um pepino do deserto, chamado localmente de vitende e o outro, uma leguminosa chamada de vielo, conhecida noutros países por feijão-bambara, que tem um valor nutricional muito interessante. No final, a comunidade preparou um cabaz com alimentos das hortas familiares para nos oferecer, o que nos emocionou muito, não esperávamos porque estávamos perante uma comunidade que “tinha tão pouco” e ainda assim, fizeram questão de partilhar tanto connosco.
VS – Que características nutricionais encontrou nestas populações e que carências são imediatamente necessárias de colmatar?
RPL – As principais carências nutricionais são a carência em vitamina A e ferro. Há uma prevalência de anemia, quer seja a nível infantil, mas também materno, elevada, mas o principal problema será mesmo a desnutrição aguda e crónica. É principalmente na desnutrição crónica que incide o programa FRESAN, na prevenção, por ter um impacto tão grande no futuro das crianças e consequentemente no desenvolvimento das comunidades e dos países.
VS – Quais as principais dificuldades que encontrou no terreno? Relacionam-se com as diferentes populações e respetivos modos de vida divergentes?
RPL – Essa é a principal dificuldade. Existem muitas crenças que levam a que a população não consuma determinados alimentos. Conhecemos um grupo étnico que não come peixe, por exemplo, existem muitos mitos sobre o ovo, acredita-se que é prejudicial às crianças, que faz perder o cabelo. São barreiras às recomendações alimentares e podem-no ser também à prevenção da desnutrição. Por outro lado, temos também esta questão de realmente o acesso a estas comunidades ser difícil, que a nível físico, cultural ou linguístico, habitualmente estas comunidades não falam português, falam outras línguas nacionais. Estas crenças e barreiras dificultam a intervenção na comunidade.
VS – Nos próximos meses, mantém-se no projeto, à distancia?
RPL – Sim. A nossa parceria técnica está programada até ao início do próximo ano, com a possibilidade de ser alargada até ao final do programa, que termina em 2024.
VS – Tem a perspetiva de regressar ao terreno?
Existe a perspetiva de voltarmos a repetir a missão técnica, uma vez que também estamos a desenvolver estes materiais que mencionei e porque estamos na fase de desenvolvimento da tabela da composição de alimentos da região e precisaremos de fazer a recolha de alimentos e de mais informação.
Da criação de empatia à troca de conhecimentos
“A missão permitiu um enriquecimento profissional ao percecionar os alimentos que produziam e quando colhiam, os que comiam e os que vendiam, como cozinhavam e quantas refeições faziam, informações de ouro que fazem os olhos de uma nutricionista brilhar”, explica à VIVER SAUDÁVEL Isa Viana. “As pessoas com quem me cruzei durante a missão partilharam as receitas, as cozinhas, as preocupações, estratégias de resiliência alimentar e até os alimentos que produziam nas suas hortas, marcando-me pessoalmente, alimentando a minha criatividade para superar os desafios e responder às necessidades”, continua a nutricionista.
Segundo destaca Isa Viana, “o contacto próximo com as Chefes dos Agregados Familiares, com os Técnicos das Organizações os e Profissionais de Saúde foi essencial para criar empatia e gerar a partilha de conhecimentos para elaboração de estratégias, materiais e documentos úteis, práticos e adaptados à realidade local”.
A FRESAN é uma iniciativa do Governo de Angola, financiada pela União Europeia e cogerida parcialmente pelo Camões I.P.. Pretende contribuir para a redução da fome, pobreza e vulnerabilidade à insegurança alimentar e nutricional no Cunene, na Huíla e no Namibe, sobretudo através do reforço da resiliência e produção agrícola familiar sustentável, da melhoria da situação nutricional das famílias e apoio ao desenvolvimento de capacidades nas instituições. Neste âmbito, a Universidade do Porto através das suas Unidades Orgânicas, Faculdades de Ciências da Alimentação e Nutrição e Faculdade de Medicina, é o parceiro técnico do FRESAN/Camões I.P. para a Componente de Nutrição.