Resistência aos antibióticos: o “lado negro” da microbiota intestinal 3609

Após a descoberta da penicilina por Alexander Fleming em 1928, a utilização generalizada dos antibióticos permitiu reduzir drasticamente a severidade e a mortalidade associadas às doenças infeciosas causadas por bactérias. Contudo, mais ou menos pela mesma altura, começaram a surgir os primeiros casos de infeções resistentes aos antibióticos, como aquelas causadas por espécies de Staphylococcus resistentes à penicilina e meticilina.

A resistência aos antibióticos (RAB) ocorre quando estes perdem, total ou parcialmente, a sua capacidade para eliminar ou inibir o crescimento de bactérias. Isto implica que algumas delas tenham adquirido mecanismos de resistência que neutralizam o efeito dos antibióticos, continuando a multiplicar-se na presença de concentrações terapêuticas destes. O principal mecanismo de RAB consiste na “ativação” de genes de resistência aos antibióticos (GRA), ou resistoma, que codificam, por exemplo, enzimas como as β-lactamases que degradam os antibióticos reduzindo a sua atividade antimicrobiana.

O principal fator responsável pelo aparecimento e disseminação destes GRA, particularmente em bactérias patogénicas, é a pressão seletiva exercida pelo uso intensivo, e muitas vezes em toma ou posologia inapropriada, de antibióticos não só a nível humano mas também a nível veterinário. Com efeito, o uso de antibióticos na produção de animais terrestres (ruminantes, suínos e aves) e pescado de aquicultura (peixes, moluscos e crustáceos) com o intuito de prevenir, controlar, e tratar infeções, e de promover o crescimento animal, contribui de forma significativa para a seleção, disseminação, e persistência de bactérias portadoras de GRA.

Quando estas últimas, através da cadeia alimentar, atingem o intestino humano, podem transferir horizontalmente (ou seja, de forma não hereditária) os GRA às bactérias comensais da microbiota intestinal. Isto acontece porque a maioria dos GRA, incluindo por exemplo os que codificam as β-lactamases, encontram-se em elementos genéticos móveis (essencialmente plasmídeos e transposões) – sequências de ADN que podem ser facilmente e rapidamente transferidas por contato de uma bactéria dadora com uma bactéria recetora, independentemente da proximidade filogenética existente entre elas.

Por sua vez, e após manter uma cópia do GRA, a bactéria recetora torna-se dadora, possibilitando assim a disseminação de GRA entre as bactérias da microbiota intestinal. Além disso, foi demonstrado que a eficiência da transferência horizontal de GRA entre as bactérias da microbiota intestinal humana (sejam elas patogénicas ou comensais, residentes ou temporárias) é cerca de 25 vezes superior comparativamente às bactérias de outros ecossistemas como o solo. Isto acontece devido à elevada densidade e diversidade de bactérias e genes bacterianos presentes na microbiota intestinal humana, criando assim as condições ideais para que esta atue como um reservatório de GRA e, ao mesmo tempo, um potenciador da disseminação da RAB.

Face a este problema, é da maior importância a existência de métodos eficazes de deteção e monitorização de bactérias resistentes aos antibióticos e do seu resistoma. Estes incluem métodos clássicos de cultura microbiana, que permitem identificar, através de ensaios de suscetibilidade microbiana, se uma ou mais bactérias são resistentes ou não a um determinado antibiótico.

Contudo, estes métodos são incapazes de detetar a maioria das bactérias resistentes aos antibióticos presentes num dado ecossistema (incluindo o intestinal), pois dependem da capacidade destas crescerem in vitro, o que muitas vezes não acontece. Como tal, surgiram métodos mais sensíveis de deteção e monitorização da RAB como a sequenciação de ADN, i.e. determinação da sequência dos pares de bases do ADN. A sequenciação da totalidade do ADN existente numa amostra de um dado ecossistema, permite identificar GAR e, em certos casos, a sua origem e os seus mecanismos de disseminação, após comparação dos dados de sequenciação com bases de dados públicas de GRA (como a ResFam, a CARD e a LacED).

Por fim, mas não menos importante, importa realçar que a prevenção e controlo da disseminação da RAB é um dever de toda a comunidade, desde os profissionais saúde e investigadores, indústria alimentar, até à população em geral. Estes, no seu conjunto, devem promover o uso controlado e regulamentado de antibióticos, assegurar condições adequadas de higiene, limpeza e desinfeção durante a produção e processamento dos alimentos, estimular a investigação sobre novos agentes antimicrobianos, e manter ativo um sistema de monitorização do uso de antibióticos e de deteção de GAR.

João Ricardo Araújo
Professor Auxiliar de Microbiologia Alimentar e de Nutrição e Metabolismo
NOVA Medical School |Faculdade de Ciências Médicas, Univ. Nova de Lisboa.
Investigador do grupo ProNutri, CINTESIS
Nutricionista, 1784N