Ratos, fatos e material diverso 2224

Uma rápida vista de olhos pelo portal base, relativo aos contratos públicos no nosso país, revela uma listagem de quase um milhão de ajustes diretos realizados pelas mais diversas entidades do Estado. Trata-se de adjudicações diretas de bens e serviços, sem concurso público, que ainda recentemente foram agilizadas por via da pandemia. Por exemplo, até 15 mil euros podem ser feitos ajustes diretos simplificados e existe um novo limite máximo de 750 mil euros para os contratos que dispensam visto prévio do Tribunal de Contas. É assim interessante percorrer o portal e constatar onde é gasto o dinheiro do erário público num momento tão crítico da nossa História recente. Quando a falta de recursos na Saúde se revela tão dramática, é inevitável sentir algum desconforto com a compra de 50 ratos de computador para as urgências COVID-19 (sic) por 3.400 euros. Ou, quando a propósito da presidência portuguesa do Conselho Europeu, se gastam 39.780 euros em fatos e camisas. E depois, claro, há a infindável lista de adjudicações de “material diverso”, designação pouco compreensível numa plataforma que se pretende de transparência. No fundo, parece haver dinheiro e agilização de pagamento para tudo… ou quase.

Com a pandemia do novo coronavírus a exigir o máximo do SNS, é estranho que o mesmo Estado que abre concurso para enfermeiros pagos a 6,42 euros por hora, pague 68 euros por um rato de computador sem pestanejar. Vivemos, há demasiado tempo e de forma transversal a vários Governos, com um discurso miserabilista de que não há dinheiro para novas contratações na Saúde. Como está dramaticamente à vista, faltam médicos, enfermeiros, auxiliares e demais profissionais de saúde, entre os quais também nutricionistas. Não vale a pena embarcar agora no discurso de que os nutricionistas poderiam dar um valioso contributo na atual situação pandémica, para com isso chamar a atenção para a necessidade destes profissionais no SNS. De facto, poderiam; mas não é por causa da pandemia (por definição uma situação absolutamente excecional para a qual não se podem dimensionar serviços de saúde) que devemos falar destas contratações. Elas deviam ter acontecido há muito tempo e não é seguramente por falta de aviso. A COVID-19, tal como uma lupa, veio apenas ampliar a carência de nutricionistas no SNS – a obesidade, constatamos hoje, é dos fatores que mais agrava o risco de morte pela doença. Aliás, nos principais hospitais nacionais, entre 50% e 80% dos internados em unidades de cuidados intensivos têm excesso de peso. Estariam estas pessoas na mesma situação caso pudessem ser acompanhadas por nutricionistas nas suas USF?

A profissão de nutricionista é ainda recente no panorama nacional e o número relativamente reduzido de profissionais deixa pouca margem para pressão política. Mesmo classes mais numerosas e estabelecidas, como os enfermeiros, têm extrema dificuldade em reivindicar melhores condições para o exercício da sua profissão. Assim, mais do que uma postura passiva de lamento ou espera por “alguém que resolva o assunto”, é tempo de cada um de nós se mobilizar na valorização da profissão. Com novo confinamento e milhares de portugueses metidos em casa, todos os nutricionistas podem assumir o seu papel de agentes de saúde pública, aconselhando aqueles da sua esfera pessoal na adoção de bons hábitos alimentares, na importância do controlo do peso e patologias associadas, ou na sensibilização dos obesos para os riscos acrescidos que correm por estes dias. Se a pandemia servir para a população entender a importância dos nutricionistas, os eleitores saberão valorizar quem estabelecer nas suas prioridades políticas a inclusão destes profissionais nos serviços de apoio do Estado. Afinal, se há dinheiro para ratos, fatos e afins, como pode não haver para algo tão importante?

Rodrigo Abreu
Nutricionista
Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição