Quando a alimentação é um ato de resistência: nutrição em contextos de emergência humanitária 878

Por Joana Feliciano, responsável de Comunicação e Relações Externas da Portugal com ACNUR

 

No Dia Mundial da Saúde, é essencial lembrar que a alimentação adequada é um direito fundamental, mas para milhões de refugiados e deslocados à força este é um desafio diário. A comida, mesmo em tempos de crise, pode ser um símbolo de esperança e resiliência. Em cenários de deslocação forçada, uma nutrição adequada é fundamental para a sobrevivência e recuperação das populações afetadas.

Para a Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR), a nutrição é parte de uma abordagem holística que inclui saúde, água, saneamento, educação e meios de subsistência. O ACNUR trabalha alinhado com o Pacto Global para os Refugiados e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (nomeadamente, o ODS 2 – Fome Zero) para garantir que estas populações tenham acesso a alimentos nutritivos e serviços básicos essenciais para a sua segurança, saúde e bem-estar.

As guerras e a fome: uma ligação cruel

As guerras e as deslocações forçadas são as principais causas da subnutrição infantil e da fome no mundo. Atualmente, 123 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar as suas casas, famílias e amigos para trás e perderam tudo, fugindo vítimas de perseguição, guerras, violações de Direitos Humanos e/ou dos efeitos dos desastres naturais e das alterações climáticas. O acesso à alimentação é, por isso, uma das primeiras necessidades a que o ACNUR responde quando os refugiados e as pessoas deslocadas chegam a um campo.

Em média, num campo de refugiados são distribuídas porções alimentares suficientes para fornecer a cada pessoa pelo menos 2.100 calorias por dia. No entanto, atingir este objetivo torna-se muitas vezes um desafio devido à falta de financiamento ou às más condições de saúde em que se encontram as pessoas refugiadas.

As crianças, por exemplo, chegam frequentemente aos campos de refugiados com sintomas de malnutrição. O ACNUR revela que 1 em cada 10 crianças refugiadas com menos de 5 anos sofre de desnutrição aguda e que quase 1 em cada 2 crianças refugiadas sofre de deficiências de micronutrientes. Sem prevenção e tratamento, a desnutrição aguda grave pode aumentar o risco de mortalidade até 25% em situações de emergência, sendo que a fome no mundo é já responsável por 45% das mortes de crianças até aos 4 anos de idade. Nestes casos de malnutrição em crianças, o ACNUR procura sempre fornecer tratamento nutricional especial para fazer face a esta condição, além de disponibilizar suplementos nutricionais para crianças com menos de 5 anos de idade e para mulheres a amamentar.

Créditos da imagem: © ACNUR/Andrew McConnell

Os desafios da alimentação em situações de deslocamento

Refugiados e outras pessoas deslocadas que foram forçadas a fugir estão em risco acrescido de subnutrição e desnutrição. Muitas vezes, estas pessoas abrigam-se em regiões com acesso limitado a alimentos ou mercados, sem meios de subsistência e fora dos sistemas de apoio nacionais. Como resultado, a insegurança alimentar torna-se uma realidade constante. Além disso, dietas pobres em qualidade, com deficiência de vitaminas e minerais, enfraquecem o sistema imunológico e comprometem o desenvolvimento infantil, causando danos irreversíveis a longo prazo.

Sem recursos adequados, estima-se que 12,8 milhões de deslocados, incluindo 6,3 milhões de crianças, possam ficar sem intervenções de saúde essenciais em 2025. A crise de financiamento humanitário atual, agravada pela redução dos investimentos em saúde nos países de acolhimento, afeta diretamente os programas de nutrição e saúde para refugiados e comunidades anfitriãs, aumentando o risco de surtos de doenças, desnutrição e agravamento de condições crónicas.

Uma realidade que já se verifica, por exemplo, na Etiópia (Região de Gambella), onde o encerramento de serviços de nutrição em quatro dos sete campos de refugiados já provocou um aumento drástico do número de casos de desnutrição grave entre crianças. Situação semelhante é vivida no Bangladesh, país que acolhe cerca de 1 milhão de refugiados Rohingya, e onde se teme que, devido à falta de financiamento, 19 mil crianças desnutridas corram o risco de não receber tratamento essencial e 40 mil grávidas percam o acesso a cuidados pré-natais. O mesmo se passa no Burundi, com o corte de programas de nutrição em vários campos de refugiados a deixar milhares de crianças sem tratamento para desnutrição e 10 mil mulheres grávidas sem acesso a cuidados pré-natais. Também o Sudão será um dos países mais afetados por este subfinanciamento das operações do ACNUR. Uma situação dramática num país com catorze regiões à beira da fome e onde se estima que 13 milhões de crianças enfrentem níveis agudos de insegurança alimentar. No campo de Zamzam, em Darfur do Norte, a fome já é uma realidade e, até ao final do ano, o ACNUR estima que 3,7 milhões de crianças menores de cinco anos venham a sofrer de desnutrição aguda severa, necessitando urgentemente de tratamento.

O papel do ACNUR na segurança alimentar

Perante estes desafios, o ACNUR atua com parceiros, governos nacionais e outras agências da ONU para garantir que populações deslocadas tenham acesso a alimentos ricos em nutrientes e serviços essenciais para prevenir e reduzir a desnutrição. Dentro das ações implementadas destaca-se:

  • Prevenção da desnutrição por via do acesso a dietas saudáveis, seguras e sustentáveis;
  • Deteção precoce e tratamento da desnutrição aguda, utilizando o modelo de Gestão Comunitária da Desnutrição Aguda (CMAM), que envolve triagem ativa e acompanhamento;
  • Promoção da amamentação e alimentação infantil adequada, essenciais nos primeiros anos de vida;
  • Combate à anemia e outras deficiências nutricionais, especialmente entre crianças e mulheres;
  • Promoção da segurança alimentar a longo prazo, incentivando programas de sustento, agricultura e acesso a serviços financeiros;
  • Adoção de uma abordagem holística que integra nutrição com saúde pública, saneamento, educação, abrigo e meios de subsistência;
  • Monitorização e recolha de dados por meio de sistemas como o iRHIS e a Pesquisa Nutricional Expandida Padrão do ACNUR (SENS);
  • Prevenção de doenças crónicas relacionadas com a má nutrição, promovendo acesso a cuidados de saúde e campanhas de imunização.

As pessoas refugiadas e as comunidades deslocadas encontram, muitas vezes, formas de resistência e resiliência através da alimentação. Neste âmbito, as hortas comunitárias em campos de refugiados têm se tornado uma estratégia eficaz para melhorar a segurança alimentar e nutricional. No assentamento de Maratane, em Moçambique, iniciativas de agricultura comunitária têm permitido que refugiados cultivem os seus próprios alimentos, reduzindo a dependência de ajuda humanitária. No Bangladesh, refugiados Rohingya adotaram técnicas tradicionais de conservação e cultivo para maximizar o uso de recursos escassos.

Garantir uma alimentação adequada é salvar vidas. O compromisso com o financiamento e a assistência humanitária é essencial para que o ACNUR e os seus parceiros possam continuar o seu trabalho vital. Ao apoiar a segurança alimentar e a nutrição, não estamos apenas a combater a fome; estamos a dar oportunidades para milhões de pessoas forçadas a fugir conseguirem reconstruir as suas vidas de forma digna e autossuficiente, promovendo esperança e um futuro.

O seu apoio é urgente para assegurarmos alimentação e nutrição adequadas, todos os donativos, sejam de que valor forem, são essenciais.