Qual o papel da mitocôndria na síndrome metabólica? 1916

Sabendo que a síndrome metabólica corresponde ao conjunto de fatores que, quando presentes simultaneamente, aumentam o risco de aparecimento de doenças como a diabetes, a doença cardiovascular, a esteatose hepática não alcoólica, entre outras e que pela sua prevalência continua a ser um problema de saúde pública, longe de ter controlo, convém explorar ‘novos’ mecanismos moleculares e celulares associados à disfunção metabólica, de modo a encontrar soluções terapêuticas mais efetivas[1].

A sua prevalência é elevada em todas as sociedades mais desenvolvidas, sendo que em Portugal se estima que esteja entre os 27,5% e os 43,1% [2]. Ao nível metabólico, já se conhecem diversos mecanismos indicados como possíveis fatores para o desenvolvimento e progressão da síndrome metabólica, nomeadamente a resistência à insulina, a inflamação crónica de baixo grau, o stresse oxidativo e a alteração no metabolismo dos ácidos gordos [3]. No entanto, os mecanismos celulares responsáveis por estas disfunções não são completamente conhecidos, em particular o papel de constituintes celulares como as mitocôndrias.

Convém recordar que as mitocôndrias são organelos altamente dinâmicos que, embora sejam primariamente reconhecidas pelo seu papel na produção de energia (onde ocorre a fosforilação oxidativa), contribuem também para outros processos vitais, como a oxidação (em beta) de ácidos gordos, termogénese, regulação do metabolismo do cálcio, e muito mais. À exceção dos eritrócitos (glóbulos vermelhos), todas as células do corpo humano contêm mitocôndrias.

Alterações no metabolismo da glicose, resistência à insulina, stresse oxidativo, inflamação e alteração ao nível do metabolismo dos ácidos gordos implicam a mitocôndria e são também características da síndrome metabólica, reforçando a relação entre este organelo e a doença.

Tendo em conta o exposto, é possível propor que a mitocôndria possa ter um importante papel na síndrome metabólica. Então, surge a questão: que papel?

Não só é interessante fazer esta reflexão como propor hipóteses de como a alimentação se relaciona com a influência da mitocôndria na síndrome metabólica.

Já é conhecido que o padrão alimentar, no seu todo, tem impacto na síndrome metabólica. Existe já evidência que suporta uma associação entre a síndrome metabólica e estilos de vida, nomeadamente ao nível da alimentação [3] [4].

É possível que alterações na dieta contribuam para a alteração da atividade mitocondrial. Compostos e nutrientes específicos podem influenciar positivamente (antioxidantes, polifenóis, ácidos gordos polinsaturados, etc) ou negativamente (ácidos gordos saturados e de cadeia longa, açúcares simples, por exemplo) a função mitocondrial [1].  No entanto, será que estas observações com compostos isolados, também se observam quando se considera o padrão alimentar com todos os seus constituintes? E será que a prevenção/promoção da síndrome metabólica também pode ser feita com base nos padrões alimentares que contribuem positivamente/negativamente para a função mitocondrial? A hipótese inicialmente proposta é que sim, mas ainda não se conhece verdadeiramente como é feita esta ligação.

Recentemente o microbiota tem suscitado muito interesse na comunidade cientifica e tem sido estudo em diferentes doenças, de entre as quais a síndrome metabólica. As bactérias e as mitocôndrias partilham a sua origem e conservam características biológicas dessa ancestralidade comum como, por exemplo, a organização dos ácidos nucleicos e vias de sinalização [5]. Sabendo que a síndrome metabólica tem associada uma disbiose que está relacionada com alterações na produção de metabolitos e compostos produzidos no cólon com impacto sistémico, poderemos estar perante um eixo de comunicação microbiota-mitocôndria responsável pela alteração metabólica?

Da mesma forma,  é de considerar a mitocôndria como um passo intermédio no tão estudado eixo intestino-cérebro que, quando destabilizado, pode também contribuir para o desenvolvimento da síndrome metabólica.

Estudos experimentais têm vindo a revelar que metabolitos produzidos pelo microbiota intestinal conseguem modular a função mitocondrial das células cerebrais (nomeadamente através da via de sinalização mTOR, sinalização por ROS, sistema imunitário, entre outros)[6]. É possível que a disfunção mitocondrial, ao ocorrer nas células do sistema nervoso central, possa impactar vários processos de relevo da síndrome metabólica, tais como como a desregulação das vias de sinalização de insulina, do apetite e do balanço energético, promoção da neuroinflamação, alterações hormonais, entre outros. Mas serão necessários mais estudos para compreender de que forma é que os diferentes metabolitos do microbiota intestinal (que são, em parte, dependentes da alimentação) conseguem impactar todas estas vias subjacentes à atividade mitocondrial neuronial.

No entanto, pode-se também propor o contrário: não é só a disfunção mitocondrial que cria distúrbios metabólicos, mas os próprios processos associados à síndrome metabólica podem impactar a função mitocondrial. Ou seja, até então tem-se considerado a disfunção mitocondrial como um dos vários fatores promotores da síndrome metabólica. No entanto, será possível que a resistência à insulina, a dislipedimia, a inflamação crónica e outros critérios da síndrome metabólica também possam, só por existir, agravar a disfunção mitocondrial? Esta hipótese, ao verificar-se possível, elucidaria alguns mecanismos de como outras causas da síndrome metabólica, como estilos de vida desadequados, podem promover a disfunção mitocondrial.

Todas as hipóteses apresentadas visam tentar explicar a relação que parece existir entre a atividade mitocondrial e a síndrome metabólica. A completa compreensão desta relação é ainda um desafio. Mas, à medida que o formos ultrapassando, poderá vir-se a descobrir novos biomarcadores, importantes para a deteção precoce e terapêutica personalizada da síndrome metabólica [7], bem como potenciais alvos terapêuticos relacionados com a mitocôndria. Este conhecimento suportará uma atuação do nutricionista mais personalizada, direcionada ao microbiota e à mitocôndria com um elevado impacto na síndrome metabólica.

 

Inês Teixeira Duarte
Nutricionista Estagiária (4415NE)
Estudante do Mestrado em Investigação Biomédica Nova Medical School

Ana Faria
Prof. Associada com Agregação
Nova Medical School

Referências:

[1] Lemos, G.d.O.; Torrinhas, R.S.; Waitzberg, D.L. Nutrients, Physical Activity, and Mitochondrial Dysfunction in the Setting of Metabolic Syndrome. Nutrients 2023, 15, 1217. https://doi.org/10.3390/ nu15051217

[2] Alves R, Santos AJ, Kislaya I, Nunes B, Freire AC. Metabolic Syndrome in Portugal: Prevalence and Associated Factors. Acta Médica Portuguesa 2022, 35(9):633-4. https://doi.org/10.20344/amp.15051

[3] Jha, B.K.; Sherpa, M.L.; Imran, M.; Mohammed, Y.; Jha, L.A.; Paudel, K.R.; Jha, S.K. Progress in Understanding Metabolic Syndrome and Knowledge of Its Complex Pathophysiology. Diabetology 2023, 4, 134–159. https://doi.org/10.3390/ diabetology4020015

[4] Park, S., Lee, J., Seok, J. W., Park, C.G. & Jun, J. Comprehensive lifestyle modification interventions for metabolic syndrome: A systematic review and meta-analysis. Journal of Nursing Scholarship 2024, 56,249–259. https://doi.org/10.1111/jnu.12946

[5] Murphy MP, O’Neill LAJ. (2024) A break in mitochondrial endosymbiosis as a basis for inflammatory diseases. Nature.;626(7998):271-279. doi: 10.1038/s41586-023-06866-z. 

[6] Zhu Y, Li Y, Zhang Q, Song Y, Wang L and Zhu Z (2022) Interactions Between Intestinal Microbiota and Neural Mitochondria: A New Perspective on Communicating Pathway From Gut to Brain. Front. Microbiol. 13:798917. doi: 10.3389/fmicb.2022.798917

[7] San-Millán, I. The Key Role of Mitochondrial Function in Health and Disease. Antioxidants 2023, 12, 782. https://doi.org/10.3390/antiox12040782