Prémios VS: “Fazer ciência é sempre uma atividade coletiva” 643

O MuscleNut Study — Monitorização da massa muscular por ultrassonografia e relação com a intervenção nutricional no doente crítico, liderado por Catarina Rosa Domingues, venceu o Prémio VIVER SAUDÁVEL 2023 na categoria “Projeto do Ano — Nutrição Clínica”. A exercer funções como estagiária de investigação no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC), afirma que esta distinção “é um reconhecimento que se traduz num estímulo forte para que continue a trilhar o meu percurso como nutricionista e cientista”.

Enquanto investigadora principal do MuscleNut Study, o que representa esta distinção?

Esta distinção representa para mim e para a equipa do MuscleNut Study um reconhecimento muito importante da qualidade científica e relevância do nosso projeto. Particularmente para mim, é um reconhecimento que se traduz num estímulo forte para que continue a trilhar o meu percurso como nutricionista e cientista, isto é, um percurso dividido entre a prática da nutrição clínica, concretamente no âmbito dos cuidados intensivos, e a investigação clínica.

Tem um gosto especial por ser uma jovem nutricionista?

Sim, reconheço os Prémios VIVER SAUDÁVEL como uma iniciativa que premeia os melhores trabalhos desenvolvidos nas diferentes áreas de atuação do nutricionista, e como recém membro efetivo da Ordem dos Nutricionistas (ON), muito me orgulha ver o projeto que desenvolvi ser distinguido com este prémio.

O que esteve na origem deste estudo?

Como a maioria das hipóteses em ciência, gosto de pensar que este projeto surgiu de uma questão intrigante na prática da nutrição clínica em cuidados intensivos, que é a perda de massa muscular rápida, precoce e que quero acreditar que não será inevitável, e que é também uma lacuna científica, aliada a um grande interesse em contribuir para um maior entendimento deste tema. Estima-se que cerca de metade dos doentes críticos desenvolvam a chamada “miopatia dos cuidados intensivos”, e que essa perda de massa muscular está associada a um pior prognóstico clínico. Além disso, a avaliação da massa muscular no doente crítico é desafiante, uma vez que os métodos comumente utilizados pelos nutricionistas como medidas antropométricas ou bioimpedância elétrica promovem, neste caso, estimativas pouco fidedignas da massa muscular e os métodos considerados como gold standard são métodos radiológicos que apresentam custo elevado e requerem o transporte dos doentes. A ultrassonografia revela-se uma técnica promissora por ser livre de radiação e poder ser realizada à cabeceira do doente por profissionais treinados, incluindo nutricionistas, e sabendo nós que a alteração do equilíbrio energético e proteico é conhecida como uma das principais causas da perda de massa muscular, foi incontrolável a curiosidade em começar a estudar a relação entre a evolução muscular através da ultrassonografia e a intervenção nutricional.

Em que consiste? Como funciona? Em que ano foi criado?

A minha paixão profissional pelos cuidados intensivos e o interesse em estudar a perda de massa muscular já viviam comigo há mais tempo, mas a construção da hipótese e a execução do projeto foram o grande mote do meu estágio à ON, orientado pela Dra. Ana Brito Costa, que iniciei em novembro de 2022 no CHULC, primeiro na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital de Santa Marta e desde janeiro de 2023 na Unidade de Urgência Médica (UUM) do Hospital de São José, onde tive a felicidade e sorte de conhecer uma equipa médica que partilhava comigo o gosto pela investigação clínica e o interesse em estudar este tema. O contributo de todos — Dra. Ana Brito Costa, Dr. Simão Rodeia, Dr. Philip Fortuna, Dra. Ana Rita Francisco e Dr. Luís Bento — foi essencial para aperfeiçoar a minha hipótese e começar a executar o projeto propriamente dito. Começámos por nos concentrar na ultrassonografia (ecografia) e em desenvolver um protocolo metodológico, que teve por base a aprendizagem sob orientação de vários médicos da equipa com experiência na técnica e o contacto com alguns profissionais a estudar este tema noutros hospitais no estrangeiro. Avaliámos, de seguida, a variabilidade entre as medições ultrassonográficas ao nível do quadricípede realizadas por mim e pela Dra. Ana Brito Costa, nutricionistas treinadas, tendo concluído que os resultados tinham uma excelente correlação. A partir daí avançámos com as medições prospetivas aos doentes internados em UCI e com o estudo da relação desses resultados com a intervenção nutricional.

Quais são as grandes mais-valias do MuscleNut Study?

MuscleNut Study é, do nosso conhecimento, o primeiro projeto a nível nacional a utilizar a ultrassonografia como método para avaliação da massa muscular no doente crítico e a relacionar esses resultados com a intervenção nutricional. Acreditamos que toda a inovação e relevância deste projeto no âmbito da nutrição clínica em cuidados intensivos, além da aplicabilidade a outros contextos da nutrição clínica, são importantes mais-valias.

Que balanço faz do projeto desde a sua implementação?

Os resultados são ainda preliminares, pelo que será importante aumentar a amostra em estudo para tirar conclusões mais robustas, mas o balanço que fazemos é sem dúvida positivo. A ultrassonografia tem vindo a revelar-se um método muito pertinente na avaliação da massa muscular prospectivamente, uma vez que nos permite quantificar variações na massa muscular que não seriam possíveis de aferir com rigor através dos restantes métodos ao alcance do nutricionista, pelas importantes limitações que anteriormente referi.

Foi receber o prémio justamente com a nutricionista Ana Brito Costa, sua orientadora de estágio. Ficaram surpreendidas com esta distinção?

Sim! Quando foram divulgados os trabalhos nomeados compreendi que tinha lado a lado colegas talentosos com projetos muito inovadores e relevantes em cada uma das áreas e que quaisquer que fossem os vencedores, seria merecido. Na cerimónia tive a oportunidade de partilhar mesa com a Dra. Joana Baleia e a Dra. Ana Rita Picado, responsáveis pelo programa Healthy Start, nomeado na mesma categoria, uma simpática iniciativa da VIVER SAUDÁVEL que nos permitiu criar um bom momento de partilha, e foi inequívoca a pertinência do projeto. Antecipei que teria sido uma decisão difícil para o júri e que independentemente do desfecho já era, por si só, um grande orgulho ver o MuscleNut Study nomeado para o prémio.

E qual foi a reação dos restantes membros da equipa?

Fui recebendo as reações dos restantes membros da equipa com grande entusiamo ao longo da cerimónia. Foram palavras que guardo com carinho, de felicitação por esta conquista que não teria sido possível sem o apoio de todos, mas sobretudo, de agradecimento mútuo, pela minha dedicação a este projeto e pela confiança que todos depositaram em mim.

Quais são as caraterísticas essenciais que um nutricionista deve possuir para desenvolver um projeto deste tipo?

Acredito que o processo de fazer ciência é sempre uma atividade coletiva, em que a ideia pode partir do “pivot”, mas o sonho e a concretização dependem da equipa e é preciso saber trabalhar em equipa. Também acredito que o que move um nutricionista, um médico ou um cientista a fazer ciência é, na maior parte das vezes, o sentimento de “fazer uma grande descoberta”, mas é preciso não ficarmos presos a esse viés cognitivo e conseguirmos identificar pertinência e praticabilidade nas nossas ideias, que, às vezes, são as mais simples. Saber lidar com o imprevisto ou com o erro e encontrar estratégias, e aqui acho que quem trabalha em cuidados intensivos já está “imunizado”, mas é importante aceitar que em ciência nem sempre temos os resultados que esperávamos, que existem projetos em que não há resultados e que uma “não-descoberta” também é uma descoberta e é preciso reconhecer-lhe valor. Não poderia deixar de acrescentar a importante capacidade de organização e gestão de tempo, capacidade de pesquisa científica, entre outras mais especificas, e, claro, um enorme gosto pela ideia.

É difícil ser nutricionista e cientista em Portugal?

Sim! Acredito que os incentivos a fazer ciência em Portugal não são suficientes para o grande volume e qualidade da investigação que é feita, e que a investigação clínica cabe na rotina dos profissionais, nomeadamente dos nutricionistas em contexto hospitalar, como um hobby, e não como uma atividade devidamente reconhecida e financiada. E é grande a tentação de abdicar desse hobby porque os nutricionistas em contexto hospitalar são poucos — eu ainda não consegui esse “feito” — para dar resposta às necessidades de saúde que existem e, portanto, sobra pouco tempo e energia para fazer ciência.

Pedimos que deixe uma mensagem aos futuros participantes dos Prémios VIVER SAUDÁVEL.

Gostava de incentivar os colegas que desenvolvem projetos nas suas áreas de atuação a avançar com a sua candidatura aos Prémios VIVER SAUDÁVEL, com confiança e gosto pela ideia que desenvolveram, e que certamente merece ser reconhecida nesta importante iniciativa.

Prémios VS 2023: MuscleNut Study vence na Nutrição Clínica

ENTREVISTA PUBLICADA NA EDIÇÃO DE JANEIRO-FEVEREIRO DE 2024 DA REVISTA VIVER SAUDÁVEL.