Por falta de tempo, não costumo ver televisão nem seguir as séries mais populares do momento. Mas despertou-me curiosidade uma notícia de há dias, referente a uma série que estreará em breve. “Insatiable” ainda não está no ar e já conseguiu reunir mais de 200.000 assinaturas para não ser transmitida. Isto porque, segundo os signatários de uma petição para boicotar a série, esta perpetua a estigmatização das mulheres com excesso de peso, ao mesmo tempo que reforça a aprovação de padrões de beleza muitas vezes impossíveis de atingir. A estreia será apenas a 10 de agosto, mas pelos vistos a história retrata os dilemas e vinganças de uma adolescente que se torna magra e atraente, depois de anos alvo de chacota e humilhação por ser demasiado gorda. E assim, temos de um lado aqueles que acusam a série de alimentar o chamado fat-shaming, do outro, aqueles que defendem que o objetivo é precisamente desconstruir estereótipos de beleza doentios. Não subscrevo o Netflix e não sei se chegarei a ver algum dos 12 episódios de “Insatiable”, mas ainda assim é o tipo de notícia que me faz refletir. Numa sociedade em que a obesidade é tema todos os dias, como se sentirão aqueles que sofrem do problema: Observados? Avaliados? Culpados? Por outro lado, como olham para estas pessoas aqueles que não são obesos ou para quem o peso não é problema: Com desdém? Com pena? Ou com indiferença? E que responsabilidades têm aqueles que, como nós, devem zelar pela saúde da população? São muitas perguntas e não há seguramente resposta fácil. Uma coisa é certa: os nutricionistas devem ser os primeiros a medir bem as palavras na hora de abordar a obesidade. O cenário atual em Portugal é um bom exemplo dos desafios que se colocam. Aquilo que começou como uma preocupação (legítima e desejável) com a saúde e qualidade de vida das pessoas, corre o risco de evoluir para uma polícia de costumes, insaciável na perseguição aos mais pesados. Atualmente, já há quem culpabilize os doentes que sofrem de diabetes, hipertensão e/ou peso excessivo pela insustentabilidade financeira do SNS! Para um leigo na matéria é fácil apontar o dedo: “os obesos que emagreçam, porque assim já não gastamos dinheiro a tratar as suas complicações de saúde!”. Mas de um profissional da área espera-se mais. À medida que o dinheiro escassear e as consequências de uma população mais envelhecida aumentarem a pressão sobre os sistemas de saúde, poderão surgir propostas mais radicais e discriminatórias para os obesos, como o cálculo das taxas moderadoras com base no IMC. E, da mesma forma, a vontade de dar o exemplo poderá ir mais longe. Nesse futuro, não bastaria aos hospitais disponibilizarem apenas “alimentos saudáveis” nas cantinas, os seus profissionais também teriam de ser “saudáveis”. Assistiremos ao dia em que só poderão trabalhar no SNS nutricionistas com IMC inferior a 25? Convém não esquecer que a razão de ser do nosso trabalho é ajudar pessoas. Falamos demasiadas vezes de “obesidade” em vez de “obesos”, de “hipertensão” em vez de “hipertensos”… Separar a pessoa da doença que sofre, não só nos afasta do foco, a pessoa, como torna mais difícil o tratamento da própria doença. Não é possível diabolizar a obesidade sem, pelo menos, beliscar também os obesos. É isso que queremos? Podem os nutricionistas realmente ajudar pessoas se o seu discurso as fizer sentir incapazes, excluídas ou culpadas?
Rodrigo Abreu, Nutricionista
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