“João”, chamemos-lhe assim, estava claramente contrariado na consulta. Entrou de cabeça baixa e com poucas falas, para, pouco tempo depois de se sentar à minha frente, pedir à mãe em voz baixa o telemóvel. «Toma, mas tens de usar sem som», respondeu-lhe a mãe, enquanto começava a explicar porque tinham vindo à Consulta de Nutrição. Com a habilidade que vem da prática, “João” desbloqueou o telemóvel, abriu o jogo que queria e os dedos iniciaram o frenesim sobre o ecrã. Em poucos segundos, o corpo curvou-se sobre o aparelho e a mente fugiu para longe dali. Apesar de estar no fim do 6º ano, e aparentemente saber comunicar porque estava na consulta, foi a mãe que se explicou pelo “João”. A pediatra estava preocupada com o salto no percentil do peso – nos últimos 3 anos, a caneta tinha cruzado as linhas dos percentis 75 e 90 para se encostar perigosamente ao 95. O menino “normal” era agora quase obeso, mas a mãe continuava a achar que estava apenas gordinho. Depois de ouvir e fazer algumas perguntas, chegou o momento de pedir ao “João” que pousasse o telemóvel. Iriamos falar das suas rotinas, preferências alimentares e do que poderíamos modificar para inverter a subida do peso. A custo, lá foi dizendo os horários das refeições e o que comia, quase sempre olhando para a mãe em busca de confirmação. Não demorou muito para encontrar um conjunto de (maus) hábitos que certamente estariam a contribuir para o seu peso. Mas as verdadeiras dificuldades começaram quando iniciei as minhas sugestões para trocas mais saudáveis na alimentação do rapaz. Leite simples e pão ao pequeno-almoço? «Isso não dá, de manhã tem de ser qualquer coisa rápida!» E ao almoço, nada de verduras? «Nem pensar! Ele só de sentir o cheiro começa logo com vontade de vomitar!» Nem na sopa? «Tem de ser só com cenoura e passada». E se, em vez destes bolos no lanche, trocar por… «Sabe, isto é o que dá mais jeito, a fruta fica toda pisada na mochila e depois ele não come». Infelizmente, para aquela mãe não havia soluções, apenas problemas e desculpas para as escolhas menos adequadas que ela e o filho faziam, dia após dia. E como culpá-la, se as dificuldades que relatava pareciam perfeitamente plausíveis? Gostar dos filhos significa precisamente ser capaz de dizer “não” muitas vezes e ter de fazer coisas que eles não gostam. Sei, pela experiência de ir às compras com as minhas filhas, que as crianças são mais sugestionáveis e que tentarão pedir-nos aquilo que mais as atrai. Por isso, não tenho problemas em dizer “não” a umas bolachas de aspeto guloso e com algum boneco que nos pisca o olho, se entendo que não é o momento de as levar. Mas para não estar o tempo todo a dizer “não”, costumo pedir-lhes que escolham os brócolos que pomos no saco, que pesem as maçãs ou que tentem adivinhar o nome dos peixes expostos na peixaria. E também as deixo fazer corridas com o carrinho das compras! É um facto que hoje estamos menos tempo com os nossos filhos e esse pouco tempo não o queremos passar a dizer “não”. É certo que andamos frequentemente cansados e torna-se mais fácil dar-lhes aquilo que nos pedem em vez de insistir naquilo que lhes faz falta. Mas não podemos esperar que sejam as crianças a regular sozinhas as suas escolhas. Ou que a Escola faça todo esse trabalho pelos Pais. Numa época em que damos tanta atenção à escolha das roupas, brinquedos ou ocupações de tempos livres das crianças, temos de voltar a dedicar alguma atenção à sua alimentação. A conviver à mesa, a ir às compras, a cozinhar. A vida mudou e dificilmente vamos voltar ao “antigamente”, mas precisamos reaprender a comer. Para o bem do “João” e de todos nós, que como ele, nos sentimos encurralados entre as dificuldades da vida moderna e a vontade de vivermos saudáveis. Rodrigo Abreu, |