Os médicos não são nutricionistas 1520

A recente publicação dos critérios de admissão ao futuro Colégio da Competência em Nutrição Clínica da Ordem dos Médicos, gerou algum debate entre profissionais de saúde, em particular, os nutricionistas. Convém recordar que esta Competência em Nutrição Clínica foi criada em 2021, tendo sido definida a sua Comissão Instaladora no ano passado. Não é, portanto, algo que tenha surgido de forma totalmente inesperada. Então, como explicar as reações que se têm ouvido no último mês? Sendo um assunto delicado e que diz diretamente respeito à prática profissional de tantos nutricionistas, é importante clarificar alguns aspetos. Porque pretende a Ordem dos Médicos criar esta competência específica, havendo profissionais qualificados, reconhecidos e regulados nesta área? A que lacunas, necessidades ou expetativas pode esta competência dar resposta, tendo em conta o interesse dos utentes de cuidados de saúde? Que mecanismos estão previstos e de que forma podem ser implementados, para que esta competência seja uma real mais-valia no cuidado das populações? Por fim, mas não menos importante, como se passam a articular médicos e nutricionistas que desenvolvem atividade na área da Nutrição Clínica? A informação disponível não é muita, mas tentarei uma análise objetiva da daquilo que se sabe até ao dia de hoje.

Porquê? Se a formação de nutricionistas em Portugal evoluiu de forma extraordinária nos últimos anos, colocando no mercado de trabalho profissionais especializados na área da Nutrição Clínica (e não só!), qual o motivo para atribuição de uma competência nesta área a outros profissionais de saúde? Não existe falta de nutricionistas para desenvolver o trabalho necessário no SNS. Não existe falta de reconhecimento das suas capacidades técnicas, atestadas por décadas de formação altamente escrutinada. E não existe falta de regulação na admissão e exercício da prática profissional, algo garantido pela Ordem dos Nutricionistas. Então, que respostas ou soluções vem trazer o reconhecimento desta competência aos médicos? Poderá estar relacionada com a prescrição de fármacos ou soluções nutricionais? Servirá esta competência para validar, através da vinheta dos médicos, a prescrição e/ou comparticipação de tratamentos (nutricionais, farmacológicos ou cirúrgicos) para o excesso de peso e obesidade? Nesse caso, talvez fosse mais simples dotar os nutricionistas de vinhetas próprias (à semelhança do que acontece com outras profissões reguladas por Ordens Profissionais), que permitam atestar a competência e legitimidade para prescrever/comparticipar produtos nutricionais, em vez de criar, aparentemente à pressa e com pouco critério, “especialistas” em nutrição.

Como? Talvez um dos aspetos que tenha gerado mais desagrado nos nutricionistas, foi o conhecimento dos critérios de admissão a esta competência. Basta aos médicos que assim o desejem, apresentar um de cinco critérios possíveis, para que lhes possa ser reconhecida competência em Nutrição Clínica. “Frequência de ações de formação com ou sem avaliação” é um dos critérios que, recordo, não são cumulativos. Contrariando um percurso de décadas, em que as profissões se têm vindo a especializar cada vez mais nas respetivas áreas de conhecimento, estes critérios transmitem uma ideia de facilitismo e banalização das Ciências de Nutrição. Aliás, esta evolução do conhecimento em Nutrição é precisamente uma das razões pela qual tantos médicos referenciam utentes para nutricionistas, em vez de se limitarem às recomendações generalistas do tipo “reduza o sal e corte nas gorduras”. Se o objetivo desta competência é capacitar médicos para a Nutrição Clínica, então seria do próprio interesse dos futuros especialistas que os critérios fossem mais específicos e exigentes. Por esta bitola, enfermeiros, farmacêuticos ou psicólogos podem também reclamar “competências específicas” em Nutrição Clínica, o que significaria transformar este campo de atuação numa verdadeira manta de retalhos, com consequências desastrosas para o suporte nutricional da nossa população.

Quem? Assumindo que teremos médicos com competência em Nutrição Clínica, como será na prática o seu relacionamento com os nutricionistas? Passarão a estabelecer planos alimentares ou farão apenas a prescrição de soluções nutricionais para efeitos de comparticipação? Definirão dietas líquidas, tratarão das questões de nutrição entérica e parentérica e farão o controlo de composição corporal? Atualmente, há um conjunto de procedimentos relacionados com a Nutrição Clínica onde diferentes profissionais de saúde participam, de forma articulada. Há médicos a fazer registo de obesidade nos cuidados de saúde primários; há enfermeiros a lidar com insulinoterapia em diabéticos; há farmacêuticos a gerir nutrição parentérica. Nada disto é um problema nem levanta questões de usurpação de competências, pois os nutricionistas sabem que o seu trabalho não é feito de forma isolada, mas sim em articulação com outros profissionais de saúde. No entanto, como explicar que venha a haver médicos a dar consultas de nutrição, se faltam médicos em tantos serviços e quando há nutricionistas disponíveis e melhor preparados para essas consultas? Uma vez que ainda se sabe pouco sobre o que significará na prática esta competência, será importante assegurar a definição de responsabilidades e a articulação entre profissionais de saúde, no superior interesse dos utentes dos cuidados de saúde.

Ao longo dos anos, tenho dado várias formações de nutrição a médicos e futuros médicos. Ao contrário de alguns colegas que se sentem “ameaçados” por essa transmissão de conhecimento, sempre entendi que, quanto mais os médicos (e restantes profissionais de saúde) souberem de nutrição, mais entenderão a complexidade do tema e a utilidade do nutricionista. Por isso, mais que um discurso hostil à intenção dos médicos se envolverem na Nutrição Clínica, será necessário que os nutricionistas, a autoridade neste campo, consigam explicar a especificidade e complexidade desta área. Não foi por acaso que as Ciências da Nutrição evoluíram como ramo de conhecimento específico, tendência que no futuro só tenderá a aumentar. Estou seguro que qualquer profissional de saúde que tenha um contacto sério com as Ciências da Nutrição entenderá que uma competência simplista numa área tão específica, não passa de um absoluto contrassenso. E é precisamente por isso que um médico não é um nutricionista.

Por Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição