Obesidade Infantil: “separar o trigo do joio” 1752

A Obesidade Infantil tem sido um tema exponencialmente falado e sobre o qual muito se tem escrito, umas vezes de forma simplista e outras em toda a sua complexidade e nem sempre devidamente fundamentado na melhor evidencia científica.

No início do século, em Portugal pouco sabíamos onde estávamos em relação a esta doença na infância, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) já identificava como epidémica, globalmente. Sem dúvida que os grandes estudos em Portugal, como o Childhood Obesity Surveillance Initiative da OMS/Europa, “assustaram” o país colocando-o em 2º lugar (37,9%), a seguir à Itália, como um dos países europeus com maior prevalência de Obesidade Infantil, em 2008. Na altura, o desafio foi lançado pela OMS na Carta Europeia de Luta Contra a Obesidade, e Portugal reagiu, e reagiu bem, foi feito talvez um dos maiores investimentos que se conhece até à data no combate à doença que rapidamente se mostrou como uma das mais prevalentes na infância.

Segue-se uma década e meia de ação com uma estratégia transversal aos vários setores da sociedade, com a contribuição conjunta daqueles com responsabilidade: a Família, a Escola, o Serviço Nacional de Saúde (SNS), os vários órgãos governamentais, incluindo governos regionais e locais, a indústria, os media, a Academia, os vários setores da sociedade civil, entre outros.

A obesidade infantil tornou-se, assim, uma prioridade na agenda política nacional com várias iniciativas: a criação da Plataforma Nacional contra a Obesidade e dos Programas Nacionais Prioritários para a promoção da atividade física (PNPAF) e da alimentação saudável (PNPAS), o desenvolvimento de campanhas nos meios de comunicação social (“Movimento Vida Positiva”, “Juntos Contra o Sal”, “Juntos Contra o Açúcar”), a criação da Estratégia Intersectorial (EIPAS) com 51 medidas para a promoção de alimentação saudável, consensualizadas por 7 Ministérios diferentes, a implementação do imposto sobre as bebidas açucaradas, a introdução de restrições à publicidade alimentar dirigida às crianças, o protocolo com a indústria alimentar e distribuição para garantir a produção de alimentos mais saudáveis promovendo a sua reformulação, a definição de normas alimentares e intervenções comunitárias nas escolas, a implementação da avaliação do risco nutricional nos hospitais, a recente proposta de modelo integrado de cuidados para a prevenção e tratamento da obesidade, bem como, a criação do Centro Colaborativo da OMS para a Nutrição e Obesidade Infantil, no Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA).

A implementação destas iniciativas e exemplos de boas práticas, acompanhadas pela tendência invertida da prevalência de excesso de peso infantil verificada entre 2008 e 2019 (de 37,9% para 29,7%), destacaram Portugal no contexto europeu, nas notícias da OMS e nos eventos das Nações Unidas. No entanto, mais recentemente, durante o período da pandemia por COVID-19 parece ter existido uma desaceleração desta tendência decrescente na prevalência de excesso de peso infantil (incluindo obesidade) que se registava até então, verificando-se um ligeiro aumento da prevalência em 2022 (de 29,7% para 31,9%). Esta desaceleração foi acompanhada por alterações sem precedentes nos hábitos e rotinas diárias, com impactos significativos nos comportamentos associados ao estilo de vida de crianças e respetivas famílias.

No entanto, importa clarificar a “confusão” que se cria quando esperamos que haja apenas uma solução ou que exista apenas uma causa. Há que “separar o trigo do joio”. A complexidade desta doença está subsidiada numa etiologia multifatorial. Infelizmente, vivemos numa era epidemiológica que se originou numa transição nutricional em que tudo são estímulos e o nosso comportamento pode mudar ao segundo.

Ana Rito: “Teremos que continuar a investigar”

Quando isolamos uma medida e dizemos que é causa da obesidade, ou que aquela iniciativa não teve impacto na saúde das crianças, é como se estivéssemos a olhar para uma peça de um puzzle de 1000 peças e adivinhássemos a imagem completa. Por exemplo, o consumo de refrigerantes açucarados em crianças (com ou sem obesidade) tem vindo a decrescer, esse é sem dúvida um ganho em saúde para a população infantil. Aliás, no recente Relatório da OMS (2023) sobre a evidência da aplicação de Impostos sobre bebidas açucaradas em ganhos em saúde resulta numa clara recomendação e expansão desta medida, ainda deficiente na Europa.

O que separa duas crianças com ou sem obesidade, é muito mais do que o seu consumo alimentar densamente energético, é claramente o ambiente onde vivem, a escola que frequentam, a literacia em saúde e a formação sobretudo da mãe, o espaço onde se deslocam, o bem-estar daquelas crianças, a relação emocional com os seus pares e com a família, a oportunidade de serem mais ou menos ativos fisicamente, a sua carga genética e tantos outros fatores.

O progresso da doença cuja prevalência se quer ver invertida é extraordinariamente dinâmico, pelo que continuemos a abordar a obesidade Infantil com a seriedade e complexidade que ela merece, continuando com este trabalho multidisciplinar e multissectorial, aquele que a evidência científica confirma que traz ganhos em saúde e que tem colocado Portugal na linha da frente de um caso de sucesso nesta matéria. Continuemos a monitorizar o estado nutricional, a combater o marketing dirigido a menores, a melhorar os perfis nutricionais dos alimentos, a regular a oferta de produtos alimentares açucarados, a realizar intervenções de educação para a aquisição de conhecimentos e atitudes mais saudáveis, bem estruturadas, promovendo bons hábitos alimentares e atividade física, e dar o passo em frente, para além de dotar o SNS de maior e melhor capacidade para lidar com o problema começando pelos cuidados de saúde primários!

Naturalmente, teremos que continuar a investigar e a afinar a abordagem na prevenção e tratamento da obesidade infantil, já que nenhum país foi capaz de a erradicar até ao momento, mas as orientações nacionais e internacionais, designadamente da OMS, são claras e entre muitas outras apontam para reinvestir na saúde infantil os valores financeiros aprovisionados através de medidas legislativas, como o da taxação de bebidas açucaradas, introduzir novas variáveis de estudo na relação com a obesidade infantil, como por exemplo as relacionados com bem-estar e saúde mental, incluir a participação ativa e dando voz a crianças e jovens no processo de intervenção comunitária para uma vida mais saudável e olhar definitivamente não para um determinante apenas mas para os complexos mapas e sistemas causais da obesidade infantil.

Ana Rito, Investigadora e Nutricionista
Coordenadora do Centro Colaborativo da OMS para a Nutrição e Obesidade Infantil
Departamento de Alimentação e Nutrição, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge