Eleito em 2020 como o melhor perito do mundo em fertilidade, segundo o ranking da Expertscape, Marco Alves lidera a equipa de investigadores da Unidade Multidisciplinar de Investigação Biomédica do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), que concluiu que uma alimentação rica em gorduras apresenta impactos negativos na fertilidade masculina, que podem ser transmitidos e herdados por duas gerações.
Em entrevista à VIVER SAUDÁVEL, Marco Alves aprofunda os resultados deste estudo, apontando os benefícios que apresenta para uma melhor seleção laboratorial da qualidade espermática em prol de maiores taxas de sucesso nas técnicas de procriação medicamente assistida. Para o investigador, os homens também devem ser seguidos nutricionalmente durante este processo, o que se traduziria num “grande avanço social para Portugal”.
VIVER SAUDÁVEL – Neste estudo fala em “memória metabólica” para justificar que duas gerações possam ser impactadas pelos hábitos alimentares de uma terceira. Como chegou a este resultado e que seguimento denota relativamente a investigações anteriores?
Marco Alves – Este é um projeto inicialmente financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e que visava identificar como flutuações hormonais relacionadas com o apetite poderiam alterar a qualidade espermática. Posteriormente, surgiu a ideia de perceber se existiam alterações causadas pela dieta, se seriam permanentes ou se poderiam ser revertidas. Para responder a esta questão fizemos um modelo experimental que consistia em alimentar, com uma dieta gorda, ratinhos durante 200 dias, e fizemos um desenho experimental que visava alimentá-los com uma dieta gorda até próximo da idade adulta, para depois revertermos para uma dieta normal.
E verificamos que esses animais, quando se revertia a dieta, perdiam peso e revertiam o síndroma metabólico, portanto deixavam de ter doença metabólica, mas continuavam a ter alterações nos espermatozoides, na qualidade espermática. E portanto o que verificamos foi que quer uma dieta gorda ao longo da vida, quer uma dieta gorda e depois reversão para uma dieta normal causavam alterações na qualidade espermática dos filhos e dos netos. São alterações irreversíveis que passam para as gerações seguintes.
VS – Quando aborda a alimentação gorda em determinados anos de vida, falamos de que idade?
MA – Fizemos dois grupos. Um até à idade adulta – consideramos um adulto de meia idade. O outro grupo era o tal de reversão da dieta até à pós-puberdade que apanhava os primeiros ciclos de produção de espermatozoides e depois mudávamos para uma dieta normal para verificar se o síndrome metabólico e a qualidade espermática recuperava. Esses animais perdem peso, revertem o síndroma metabólico, ficam saudáveis, teoricamente, mas quando fomos avaliar a qualidade espermática, ela estava afetada e os filhos e netos que eram alimentados com uma dieta normal tinham alterações na qualidade espermática. Há uma memória metabólica, porque embora estes tenham sido sempre alimentados com uma dieta normal, tinham alterações da qualidade espermática.
VS – Estamos, portanto, perante uma bola de neve? Ou seja, se o avô afeta o pai e o filho, esse mesmo filho, ao ter ele mesmo um filho, passar-lhe-á também essa memória metabólica?
MA – Sim, porque a alteração metabólica no testículo que é provocada durante a vida do pai, independentemente se é a vida toda ou se é só no fundo uma obesidade infantil ou na puberdade, mantém-se nos filhos e netos com assinaturas profundas na qualidade espermática. A sociedade não é alertada para um facto de que nas últimas décadas houve 60% de declínio da qualidade espermática. No número e concentração de espermatozoides.
Nas últimas décadas tem havido esta diminuição, que é sobreponível com o aumento das doenças metabólicas como a diabetes e a obesidade. Estamos a assistir ao declínio muito acentuado da qualidade espermática nos homens. Há pessoas que acham que isto seria coincidência, eu acho que não seria, e este estudo veio demonstrar não só que essas doenças causam problemas no imediato – o homem fica com problemas de fertilidade durante o tempo em que é obeso, diabético ou tenha síndroma metabólico – mas mais importante que isso é que as gerações seguintes têm também alterações, mesmo que tenham uma alimentação saudável.
VS – Seguindo a mesma lógica de três gerações, seriam então precisas outras gerações com alimentações saudáveis para reverter esse impacto negativo?
MA – Embora o estudo tenha sido feito em ratos, temos estudos feitos em espermatozoides humanos que demonstram que estes genes relacionados com a obesidade existem no espermatozoide e que de facto são transmitidos. E o que está a dizer faz sentido, nós teríamos de esperar uma ou mais décadas e gerações para verificar o que está a acontecer neste imprinting, se ele vai continuar nas gerações seguintes ou se poderá ser reversível.
VS – Quando associa a alimentação rica em gorduras com a obesidade, denota um declínio na qualidade daquilo que hoje são os nossos alimentos?
MA – Exatamente, essa é uma questão importante que se prende com a qualidade da alimentação. É um projeto que gostaria de fazer a seguir. Era muito importante caracterizar a qualidade da alimentação. Ou seja, neste momento nós sabemos de 60% de gordura, 40% de hidratos de carbono, portanto, a composição. Mas é preciso conseguir variar os ingredientes da dieta e verificar quais são os mais importantes. Nós paralelamente fizemos estudos que demonstram que a substituição da água pelo chá branco teria efeitos muito benéficos a nível do síndroma metabólico e da qualidade da fertilidade, portanto essa era uma área que gostaríamos de apostar.
VS – Relativamente aos processos de reprodução assistida, considera que as clínicas responsáveis por este género de procedimentos deveriam ter em conta este estudo? Seria possível escolher os espermatozoides que não tivessem estas características negativas?
MA – Uma condição que as pessoas não sabem nos tratamentos de procriação medicamente assistida é que o espermatozoide é escolhido quase aleatoriamente. Saliento o quase porque efetivamente existem métodos de seleção que pretendem escolher espermatozoides mais funcionais, mas na realidade é empírico, é um método aleatório. Em última análise, o que gostaríamos de fazer, e é um objetivo de médio e longo prazo, era criar uma plataforma que permitisse identificar espermatozoides que têm informação de, neste caso, doenças metabólicas, mas no fundo identificar muitas outras, como a transmissão de doenças do foro psicológico ou do autismo. E aí eliminar esses espermatozoides e escolher o melhor, aquele que dá mais garantias de não passar essa informação. É um projeto que estamos a tentar financiar na Europa, vamos ver se temos sorte.
VS – Considera que este estudo e esta temática, porque se relaciona com a alimentação, deveriam ser uma parte importante a reter pelos profissionais da nutrição?
MA – O homem, quando quer ser pai, não é seguido. É a realidade, o casal procura uma clínica de tratamento de fertilidade, a mulher é seguida, é feito o seguimento hormonal, uma dieta, têm de ter um determinado BMI (índice de massa muscular) senão nem é feito o tratamento, mas os homens não são sequer estudados. O homem não tem nenhum seguimento, seja nutricional, seja psicológico… mas ao nível da nutrição não existe um cuidado de fazer o seguimento de um homem que quer ser pai e, portanto, o aconselhamento nutricional do homem numa altura crítica em que vai ser pai seria efetivamente um grande avanço social para Portugal, que não tem. Os homens apenas decidem ser pais, tanto faz.
VS – Falamos de uma prática nacional ou generalizada?
MA – Trabalho com o Centro Americano de Medicina de Reprodução e é feito o aconselhamento nutricional aos homens que procuram tratamento de fertilidade. Em Portugal, de um modo geral, haverá casos pontuais, mas praticamente não existe um aconselhamento nutricional cuidadoso para os homens que vão ser pais.
VS – Que alimentos se apresentam como mais prejudiciais? E que impacto terá o álcool?
MA – O álcool já se sabe há algum tempo que prejudica e aliás existe uma colega em Portugal – a professora Margarida Fardilha da Universidade de Aveiro – que teve um estudo durante a época da Queima das Fitas e verificou que os estudantes de facto bebem mais e têm um comportamento social mais abusivo, acabando por ter problemas de fertilidade. Em relação à qualidade, de facto quando falamos de dieta gorda estamos a simular fast food.