Quando comecei a trabalhar, na viragem do milénio, a maioria dos nutricionistas queria desenvolver a atividade em contexto clínico. Em ambulatório ou internamento, no setor Público ou Privado, a ambição era poder trabalhar em Nutrição Clínica. Por isso mesmo, lembro-me de assistir várias vezes a um certo desdém ou condescendência dos colegas da área clínica para com aqueles que tinham optado por trabalhar na indústria agroalimentar. Como se não trabalhar numa clínica ou hospital fosse uma segunda escolha ou sinal de que não se era suficientemente bom… Nessa altura, um nutricionista que fosse trabalhar na indústria poderia desenvolver planos de HACCP, tratar de fichas técnicas de produto ou apoiar a rotulagem, funções muitas vezes disputadas com engenheiros alimentares ou veterinários. Mas a crescente preocupação dos consumidores com o equilíbrio nutricional, rapidamente alargou o âmbito de ação do nutricionista na indústria alimentar e provou que estava certa a visão das empresas que tinham escolhido contratar estes especialistas.
Passaram vinte anos e, felizmente, hoje é raro ver alguém da área clínica desvalorizar o papel dos colegas na indústria. Pelo contrário, parece cada vez mais evidente o enorme impacto que o trabalho dos nutricionistas na indústria agroalimentar pode ter. Enquanto um nutricionista na clínica ou hospital está limitado no número de utentes que pode atender, os produtos alimentares desenvolvidos com/por nutricionistas têm um alcance enorme, impactando milhares ou milhões de pessoas. Estes colegas fazem um trabalho quase invisível e tantas vezes contra a própria vontade dos consumidores que pretendem beneficiar. De facto, a redução de sal, açúcar ou gordura nos alimentos não é uma prioridade para a maioria da população. É que, apesar de nos inquéritos muitos consumidores afirmarem valorizar melhores perfis nutricionais, quando chega o momento de comprar, fatores como o preço, sabor e conveniência continuam a ser determinantes. Esta dissonância entre intenções e comportamentos explica porque a reformulação de alguns produtos ocorre em silêncio, isto é, sem as marcas o comunicarem – há muitos consumidores que acham que uma redução de sal ou açúcar torna os seus produtos favoritos menos agradáveis, ao ponto de deixarem de os comprar! Assim, lutando contra orçamentos de R&D limitados, painéis de prova exigentes e sob a pressão permanente da etiqueta de preço, os nutricionistas na indústria não têm a vida fácil. E, como se não bastasse, há ainda a vontade do marketing explorar tudo o que seja comunicável, nem sempre com o rigor que o nutricionista exige.
Apesar de, por vezes, serem injustamente acusados de “estar vendidos” à indústria agroalimentar, os nutricionistas são na realidade uma voz crítica e um fator de mudança dentro dessas empresas. Por isso, é necessário reconhecer que o papel da profissão é muito mais abrangente e deve estar interligado nas suas diferentes dimensões. Aliás, ao nutricionista “clínico” (que lida com os utentes com obesidade e/ou problemas resultantes dos maus hábitos alimentares) e ao nutricionista “industrial” (que ajuda a desenvolver e comunicar produtos alimentares mais equilibrados), junta-se ainda o nutricionista “político”, que influencia e contribui para as medidas políticas destinadas a promover melhores hábitos alimentares na população. Como as três pernas de um banco, todos são necessários para que o propósito da profissão se concretize!
Rodrigo Abreu
Nutricionista
Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição