Nutrição em Portugal: Por aqui, “mandam” elas! 105

Reportagem originalmente publicada na edição de novembro-dezembro da revista VIVER SAUDÁVEL.

 

O título pode sugerir uma ‘guerra de sexos’. Nada de mais errado. Vamos a factos! A profissão de nutricionista é amplamente dominada por mulheres, representando mais de 90% dos profissionais registados na Ordem dos Nutricionistas (ON). Além disso, o género feminino está em maioria em todas as profissões de saúde, mas continua aquém nos cargos de liderança, exceção feita à Nutrição. Por que será? Fomos investigar.

Hoje, são as mulheres que, em maior número, alcançam graus superiores de formação. Embora algumas carreiras ainda sejam percebidas como tipicamente masculinas, como a de polícia, ou femininas, como a de educadora de infância, outras têm testemunhado uma transformação notável. Por exemplo, nas últimas três décadas, as mulheres superaram os homens em profissões que antes eram predominantemente masculinas, como a de médico.

Ana Gabriela Cabilhas assegura que “a segregação profissional entre homens e mulheres existe e tem custos”. “Há rótulos associados a determinadas profissões e áreas de trabalho. A limitação de opções formativas e, consequentemente, de saídas e ofertas profissionais, começa com estigmas e preconceitos. A escola tem um papel fundamental para apoiar, de forma informada, as escolhas educativas. As mulheres continuam a ser poucas nos cursos ligados às ciências, tecnologia, engenharia e matemática”, aponta. A primeira nutricionista eleita deputada à Assembleia da República, que alcançou o feito histórico aos 27 anos, sinaliza que “só mais tarde, até no ensino superior, é que muitos jovens se apercebem do impacto que uma escolha com base em ideias pré-concebidas pode ter no seu futuro, inclusive em matéria salarial”.

O quadro global 

O Relatório Social do Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde revela que “em 2018, a taxa de feminização fixou-se nos 76,5%, o que está acima da taxa da administração pública no global (60,2%)”. Por outras palavras, 7,7 em cada 10 profissionais de saúde são mulheres. Em contraponto, elas ocupam menos de 40% dos lugares de topo. A própria Organização Mundial da Saúde alerta que “o sector da saúde é maioritariamente composto por mulheres, mas é liderado por homens”.

Apesar das conquistas, na área da saúde, a falta de representatividade feminina em cargos de liderança persiste. “As questões de género já não determinam a qualidade das ideias e das lideranças, e creio que isto também revela um progresso geracional e social”, introduz Ana Gabriela Cabilhas. Ainda assim, lamenta, “a mudança não está a ser tão rápida como desejávamos”. Para a jovem nutricionista, “é difícil de explicar que não existam mulheres disponíveis para servir a causa pública. Eu acredito que existem!”. Por isso, “é essencial garantir a igualdade de oportunidades na participação cívica e em lugares de liderança. De forma reconhecida, conjunta e como resultado da evolução cultural”.

Segundo Graça Ferro, esta sub-representação pode ser atribuída a fatores estruturais, culturais e institucionais que dificultam a ascensão a cargos de liderança, mesmo em áreas onde as mulheres são predominantes, assinalando que existem “barreiras invisíveis” que impedem o avanço das mulheres, apesar da sua qualificação e experiência. “Os cargos de liderança, muitas vezes, ainda são associados a caraterísticas historicamente vistas como masculinas, como assertividade, competitividade e tomada de decisões rápidas, enquanto as mulheres podem ser estereotipadas, erradamente, como mais adequadas a papéis de cuidado e apoio”, adianta.

Ana Gabriela Cabilhas: “A segregação profissional entre homens e mulheres existe e tem custos”. Fotografia: João Pedro Domingos / PSD

As expetativas culturais e sociais, prossegue, “podem pressionar as mulheres a priorizar papéis familiares sobre a carreira, o que pode impactar o tempo e os recursos que dedicam ao crescimento profissional”. Ademais, “muitas organizações ainda seguem um modelo tradicional de liderança, que privilegia uma hierarquia rígida, decisões centralizadas e pouca flexibilidade, caraterísticas que podem não valorizar os estilos de liderança mais colaborativos ou empáticos, frequentemente associados às mulheres”.

Apesar de tudo, a diretora do Serviço de Nutrição e Alimentação da Unidade Local de Saúde do Alto Minho (ULSAM) tem esperança que “as políticas de equidade de género nos órgãos decisivos, já implementadas nas diferentes estruturas da administração pública, bem como o alargamento das licenças de parentalidade e a possibilidade de conciliar trabalho presencial com teletrabalho, possam vir a reduzir gradualmente estas assimetrias”.

Os homens corroboram esta visão. “É uma questão estrutural da sociedade em geral, e que se está a alterar. Agora, é a geração de 70 que está em posições de liderança, momento em que politicamente as mulheres não tinham as mesmas oportunidades académicas, sociais e políticas que os homens. Atualmente, isso não se verifica; e existem mecanismos legais que defendem a igualdade de género em cargos de liderança, como a Lei da Paridade”, analisa João Lima, coordenador da licenciatura em Dietética e Nutrição da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra (ESTeSC). Fernando Pichel, diretor do Serviço de Nutrição da Unidade Local de Saúde de Santo António (ULSSA), perspetiva que “num futuro próximo”, o número de mulheres em posições de liderança “acompanhará a distribuição de mulheres/homens na força de trabalho”.

Outras profissões de saúde 

Em 1991, dos 28.326 médicos inscritos na Ordem dos Médicos, 11.385 eram mulheres (40,2%). Em 2023, elas já constituíam a maioria, representando 57,6% (36.312) dos 63.053 médicos inscritos.

Também em 2023, a distribuição de enfermeiros ativos em exercício por género era de 69.069 mulheres (82,7%) e 14.469 homens (17,3%). Para completar o quadro, 85% dos psicólogos, 79,5% dos farmacêuticos e 61,6% dos médicos dentistas eram mulheres.

A profissão de nutricionista 

Face ao exposto, podemos concluir que o domínio feminino é notório, contudo, presentemente, a ON é a única ordem profissional da área da saúde encabeçada por uma bastonária. As restantes categorias de profissionais de saúde — enfermeiros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas e psicólogos — apresentam homens na liderança. Como é sabido, até ao momento, a ON teve sempre mulheres na liderança, Alexandra Bento e Liliana Sousa, e apenas um homem candidato ao cargo, Fernando Pichel.

Fernando Pichel: Profissão “cresceu num período em que a igualdade de oportunidade de estudar é atingida”.

Realizado em 2014, o ‘Estudo do Percurso Académico e Socioprofissional dos Membros da ON’ revelava que “é notória a maioria de membros do género feminino, correspondendo a 89% do universo dos membros da Ordem”. Em 2019, o segundo trabalho efetuado no âmbito do Observatório da Profissão indicava que “nos cinco anos que medeiam os questionários, observou-se o crescimento sustentado do número total de profissionais, que passou de 2.343 para 4.032”. A nível demográfico, comprovava que “a profissão continua a ser caraterizada pela predominância de membros do sexo feminino (91%)», para concluir que «um dos aspetos que deve ser relevado é a aparente feminização da classe”.

A 31 de dezembro de 2023, a base de dados da ON apontava para os 5.018 membros efetivos com inscrição ativa, não detalhando por género. A mesma fonte revela que, ao dia de hoje, 90,2% são do sexo feminino.

Os órgãos da ON, não incluindo o recém-criado Conselho de Supervisão, são constituídos por 50 mulheres (86,2%), entre elas uma não nutricionista, e oito homens (13,8%). Adicionalmente, os três Conselhos de Especialidades são presididos por mulheres. Existem 724 nutricionistas especialistas, 87,3% são do sexo feminino.

Mais exemplos na Nutrição

A contribuição feminina é crucial na prevenção, tratamento e recuperação de doenças em hospitais, clínicas e demais serviços de saúde. As mulheres desempenham um papel relevante na investigação e estão envolvidas na formulação de políticas públicas, como é exemplo o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), liderado por Maria João Gregório, que sucedeu na direção a Pedro Graça, agora diretor da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP).

Criada em 1982, a Associação Portuguesa de Nutrição (APN) teve, até à data, cinco presidentes da direção, num total de 13 mandatos. Foi quase sempre chefiada por mulheres, exceção feita aos dois mandatos de Fernando Pichel, na década de 90. Desde a sua fundação, 93% dos associados efetivos e 90% dos associados estudantes são do sexo feminino, assim como 60% dos corpos sociais. Atualmente, estes últimos integram 25 elementos, 17 são mulheres (68%).

Na Sociedade Portuguesa de Ciências da Nutrição e Alimentação (SPCNA), o cargo de presidente da direção é ocupado por Flora Correia e os corpos sociais, salvaguardando que nem todos são nutricionistas, têm uma maioria feminina (72,2%). Já a Sociedade Portuguesa de Nutrição Clínica e Metabolismo (SPNCM) tem a particularidade de na composição dos órgãos sociais apresentar apenas um homem, justamente o presidente da direção, Júlio César Rocha. O mandato atual conta com oito mulheres (88,9%), incluindo uma não nutricionista.

Graça Ferro: “As mulheres têm caraterísticas próprias que as tornam excelentes líderes”.

Entre os futuros nutricionistas, dos 23 elementos que compõem os órgãos sociais da Associação Nacional de Estudantes de Nutrição (ANEN) para o mandato de 2024, 20 são do sexo feminino (87%) e três do sexo masculino (13%). Desde 2017, passaram pela direção desta federação de estudantes sete presidentes, sendo cinco do sexo feminino (71%).

Contexto académico

A partir do ano letivo 2024/2025, passam a ser 17 as instituições de ensino superior onde são ministradas as licenciaturas que permitem o acesso à profissão de nutricionista. Por sinal, 16 são dirigidas ou coordenadas por mulheres. A única exceção é João Lima, que desvaloriza a situação: “Acho que é um acaso, nada relevante, ser homem ou mulher. Sou um nutricionista, no meio de nutricionistas”.

A FCNAUP é uma unidade orgânica de ensino e investigação da Universidade do Porto (U.Porto) e, como tal, tem um diretor. Contracorrente, até à data, três dos quatro diretores são homens, mas o ‘reinado’ mais longo pertence a uma mulher, Maria Daniel Vaz de Almeida, entre 1999 e 2014, numa altura em que os Estatutos não estabeleciam que o diretor pode exercer, no máximo, dois mandatos consecutivos ou três intercalados.

Formação em Nutrição

Segundo os dados mais recentes da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), alusivos ao ano letivo 2022/2023, diplomaram-se 154 alunos em estabelecimentos de ensino superior público politécnico — licenciatura em Dietética e Nutrição — , entre os quais 20 do sexo masculino (13%) e 134 do sexo feminino (87%).

No ensino superior público universitário — licenciatura em Ciências da Nutrição –, entre os 128 graduados, 18 eram homens (14,1%) e 110 mulheres (85,9%). Na FCNAUP, a instituição que mais alunos formou, num total de 60, nove eram homens (15%) e 51 mulheres (85%). Na mesma licenciatura, mas no ensino privado, num total de 101 diplomados, 13 eram homens (12,9%) e 88 mulheres (87,1%). Resumindo, em 2022/2023, 383 estudantes concluíram as licenciaturas que permitem exercer a profissão de nutricionista, 332 do sexo feminino (86,7%) e 51 do sexo masculino (13,3%).

Passado e presente 

Graça Ferro certifica que a Nutrição sempre teve mais mulheres, “não só em Portugal, mas na maioria dos países”, todavia nega ser uma profissão feminina, recordando os seus fundadores, Norberto Teixeira dos Santos e Emílio Peres. “Estes dois nomes tão importantes da nossa profissão deveriam ser inspiradores para que jovens do género masculino ambicionassem vir a ser nutricionistas”, aclama. Presentemente, enaltece, “temos colegas homens que muito nos honram e que são um marco de referência para todos nós, quer ligados à docência no ensino superior, à nutrição clínica, nomeadamente ao desporto”.

Cátia Pontes: Na Nutrição, as mulheres “mostraram as suas capacidades de liderança, organização e unificação”.

Ana Gabriela Cabilhas alinha pelo mesmo discurso. “O passado e o presente mostram-nos que a grande parte dos nutricionistas portugueses são mulheres. As mulheres podem e devem continuar a aumentar o impacto da atuação dos nutricionistas na saúde da população, enquanto trabalhamos para desconstruir a ideia de que a opção pela Nutrição é um domínio feminino”, reforça, evidenciando que “temos colegas nutricionistas que são uma referência e um exemplo para jovens rapazes que queiram fazer um percurso ligado à área da saúde”. “Sejam homens ou mulheres, a atuação dos nutricionistas é fundamental, nos hospitais, nas autarquias, nos clubes desportivos, nas clínicas, nas cantinas, na indústria, nas escolas, no sector social”, salienta.

Mulheres no ‘comando’

Na área da Nutrição, as mulheres assumem com mais frequência cargos de liderança, contrariando o que sucede nas outras profissões de saúde. Graça Ferro advoga que “as mulheres têm caraterísticas próprias que as tornam excelentes líderes”, destacando competências como empatia, resiliência e comunicação, “valiosas em ambientes de saúde, onde o relacionamento com utentes, familiares e colegas das equipas multidisciplinares é fundamental”. Nos cargos de liderança, “é fundamental saber lidar com conflitos de maneira assertiva e humanizada, sabendo colocar-se no ‘lugar do outro'”.

A nutricionista declara que “em algumas situações, a presença de mulheres em cargos de liderança pode contribuir para a criação de um ambiente de trabalho mais seguro e acolhedor, tanto para os utentes quanto para os colaboradores. As mulheres podem ser percebidas como menos intimidadoras, e isso pode facilitar a resolução de conflitos de uma forma mais apaziguadora”.

Do ponto de vista de Graça Ferro, assistimos a “uma mudança crescente nos estereótipos tradicionais de género, com uma maior aceitação de mulheres em funções de liderança”, ainda que “esta situação nunca se tenha verificado na Nutrição”. “Historicamente, na nossa profissão, foram tradicionalmente mais mulheres, até ao momento, a assumir papéis de liderança, em funções de direção de instituições do ensino superior, órgãos da nossa ordem profissional, direções de Serviços de Nutrição em estabelecimentos de saúde, departamentos de qualidade de empresas de restauração coletiva, autarquias, sector social”, explana.

Cátia Pontes admite que a presença dominante das mulheres na Nutrição “poderá estar relacionada com o facto de a mulher ter associado o papel de mãe, e a mãe é por inerência quem cuida da alimentação. É a mãe que amamenta e que tem este instinto de promover uma alimentação cuidada e segura aos seus filhos”.

A coordenadora da licenciatura em Dietética e Nutrição da Escola Superior de Saúde de Leiria (ESSLei) e membro do Conselho Geral da ON considera que a liderança feminina se deve à história da Nutrição, marcada pela presença constante de mulheres que «mostraram as suas capacidades de liderança, organização e unificação». No caso da Nutrição, “as mulheres não tiveram de lutar por esse espaço porque o espaço já era delas”.

João Lima: “A literatura mostra que as mulheres têm um maior interesse pela saúde, pelo bem-estar, pela alimentação saudável” / Fotografia: GCEI-ESTeSC

Por seu turno, Ana Gabriela Cabilhas defende que “deve ser valorizada a participação política e académica das mulheres nos destinos da Nutrição e em lugares cimeiros e de liderança, uma vez que na sociedade, embora as mulheres estejam a recuperar o atraso civilizacional nesta matéria, a mudança não está a ser tão rápida quanto o desejável e subsistem desigualdades que vão sendo perpetuadas de acordo com critérios de antiguidade e desequilíbrio”.

Fazer a diferença 

Cátia Pontes atribui a sua posição na ESSLei ao conhecimento aprofundado que tem do curso e da escola. “Estou aqui desde 2012. Iniciei funções como assistente convidada no segundo ano da primeira turma da licenciatura e, desde então, fui sempre participando nas atividades da escola, como docente e investigadora. Além disso, penso que também poderá estar relacionado com o facto de ter desenvolvido uma boa relação com os estudantes e com os restantes colegas”, reflete.

Para Graça Ferro, “resiliência” é a palavra que melhor define o seu percurso. “Comecei sozinha no Hospital Conde de Bertiandos, em Ponte de Lima, em 1994. Formámos o Serviço de Nutrição, com a fusão com o Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo, em 2003, passando a quatro elementos. Atualmente, dirijo uma equipa de 17 colegas”, relata, prometendo não ficar por aqui.

Quanto aos cargos de presidente do Conselho de Especialidade de Nutrição Clínica da ON e de diretora executiva da SPNCM, comenta que “são cargos que ocupo de forma graciosa, em que tenho de utilizar o meu tempo pessoal para poder desenvolver as tarefas com as quais me comprometi quando fui eleita”, aplicando, novamente, “a resiliência e o espírito de missão”, porque os trabalhos desenvolvidos por estas duas equipas “podem fazer a diferença na Nutrição em Portugal”.

Ana Gabriela Cabilhas é um dos rostos da nova geração de nutricionistas. Foi presidente da Federação Académica do Porto, membro do Conselho Geral da U.Porto e membro do Conselho Nacional de Educação. Atualmente, integra a direção da APN. Com um percurso fortemente ligado ao associativismo estudantil, afirma que “trabalhar em prol dos outros, na defesa das novas gerações, sem esperar nada em troca”, solidificou o seu compromisso cívico. “Tenho a certeza de que a avaliação do meu contributo associativo foi determinante para hoje estar deputada da nação. Cada um de nós é convocado para a defesa da nossa democracia, e sempre acreditei que é possível fazer mais e melhor”, sublinha.

Homens entre mulheres 

Fernando Pichel reconhece que a profissão de nutricionista é “uma ‘profissão maioritariamente de mulheres’, o que, para mim, é diferente de ser uma ‘profissão de mulheres'”. João Lima confirma, porém, anuncia, “é uma tendência que se vem a atenuar, pela entrada progressiva de mais estudantes do género masculino nas licenciaturas”. “A literatura mostra que as mulheres têm, geralmente, um maior interesse pela saúde, pelo bem-estar, pela alimentação saudável; questões fulcrais para quem opta por escolher para a sua vida profissional cuidar do outro através da alimentação”, transmite.

Hugo Pereira: “Na minha turma, houve um aumento significativo no número de rapazes”.

Indo ao cerne da questão, Fernando Pichel lembra que estamos perante uma “profissão muito jovem”, que “cresceu num período em que, felizmente, a igualdade de oportunidade de estudar é atingida”. Assim, tendo em consideração o número de profissionais mulheres e o menor historial da profissão, entende que “é natural que haja maior probabilidade de estarem à frente dos destinos da Nutrição”. “Nas outras profissões da área da saúde, houve períodos em que também havia um maior número de mulheres no destino das profissões, nomeadamente os farmacêuticos e os enfermeiros”, regista este que é um dos poucos homens a dirigir o Serviço de Nutrição de uma ULS. João Lima acrescenta que “numa sociedade em que se discute tanto a igualdade de género, e as razões que levam as mulheres a não ascender a cargos de liderança quando estão em maioria nas profissões, nos grupos de trabalho ou nos órgãos, considero que se fosse ao contrário é que seria preocupante”.

Questionado sobre a existência do estereótipo de que os nutricionistas são sempre mulheres, Fernando Pichel, licenciado em Ciências da Nutrição pela FCNAUP em 1988, partilha que “atualmente, penso que pode haver este estereótipo. No início do curso, não existia, porque o número de homens e mulheres formados era semelhante”. Proveniente de uma geração de nutricionistas mais recente, João Lima tem uma opinião diferente: “Não considero que haja este estereótipo”. A dupla garante nunca ter sentido qualquer preconceito, exclusão ou discriminação, em qualquer fase do percurso estudantil, profissional ou associativo.

Nutrição no masculino

Sobre os fatores decisivos para chegar a um cargo de chefia, Fernando Pichel realça que “a vontade de fazer crescer a profissão e de haver um Serviço de Nutrição independente e autónomo”, fizeram com que “manifestasse a minha vontade e me disponibilizasse para exercer estes cargos, que desempenhei, desempenho, e outros que me propus a desempenhar, e não fui escolhido, nomeadamente o de bastonário da ON”.

Ser diretor do Serviço de Nutrição da ULSSA decorre de um “percurso longo e com vários avanços e recuos”, confidencia, sendo o somatório de vários fatores, como “a determinação pessoal” e “a missão do Serviço e o projeto para o implementar”. Além disso, menciona o peso da antiguidade e do reconhecimento das suas capacidades técnicas, científicas e de gestão do Serviço por parte do conselho de administração e dos outros profissionais de saúde da ULSSA. Também ressalta que a sorte é um fator importante, embora acredite que “a sorte protege os audazes”.

Quanto a João Lima, que, além de coordenador da licenciatura em Dietética e Nutrição da ESTeSC, é membro do Conselho Geral da ON, descreve que foi um “processo natural”, e que ambos surgiram “por me ter colocado ao serviço — na instituição na qual trabalho para o exercício das funções que fossem necessárias no momento; e da representação dos colegas, no caso do Conselho Geral da ON”.

Homens ganham terreno 

Na procura de uma tendência para o futuro, ao analisar os dados facultados por Cátia Pontes, verifica-se que o número de estudantes do sexo masculino inscritos na licenciatura em Dietética e Nutrição da ESSLei cresceu nos últimos cinco anos, passando dos 19 (12,9%), no ano letivo 2020/2021, para os 32 (20,4%), no ano letivo 2024/2025, contra 128 (87,1%) e 125 (79,6%) estudantes do sexo feminino, respetivamente. Por outro lado, segundo os dados da DGEEC, no ano letivo 2022/2023, esta instituição apresentou 18,2% graduados masculinos — seis em 33.

Convidada a dissecar estes resultados, a coordenadora indica que este aumento está “muito relacionado” com a notoriedade que a nutrição no desporto tem vindo a ganhar nos últimos anos. “Invariavelmente, os rapazes que entram no curso querem seguir uma carreira em que possam aliar os conhecimentos de Nutrição ao desporto que praticam, embora no final da licenciatura já tenham, por vezes, outras ambições”, avança. Acresce “o facto deste tema ser muito abordado nas redes sociais” e, também, “o facto de os clubes desportivos começarem a dar destaque ao trabalho do nutricionista”.

Maria Manuel Velosa: A liderança na área da Nutrição em Portugal “reflete fielmente” a realidade da profissão.

Esta é uma realidade muito diferente daquela que Cátia Pontes encontrou quando frequentou o bacharelato em Dietética na Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa (ESTeSL) e a licenciatura em Ciências da Nutrição na FCNAUP, no início dos anos 2000. “Na minha turma do bacharelato eram só mulheres. Tenho ideia que havia apenas dois rapazes no curso todo. Na minha turma da licenciatura, penso que eram cinco rapazes”, confere.

É também notório um crescendo no número de rapazes na licenciatura em Dietética e Nutrição da ESTeSC. Na análise enviada por João Lima, um dos dados que salta à vista é que no ano letivo 2012/2013, entre os primeiros graduados desde que o curso reabriu em 2009/2010, não havia sequer um estudante do sexo masculino. Em 2019/2020, 3% dos alunos finalistas eram homens, ao passo que em 2021/2022 já representavam 25%. De 2022/2023 até à data, a percentagem de estudantes que frequentam os quatro anos desta licenciatura situa-se sempre acima dos 20%. O responsável justifica este aumento com um “maior conhecimento da profissão” e pelo “crescimento de novas áreas da profissão, mais apreciadas pelo género masculino, como é exemplo a nutrição desportiva”.

O que pensam os jovens?

Porque os jovens são o futuro da profissão, importa saber o que eles pensam sobre o tema. Recém-licenciada em Ciências da Nutrição pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), Maria Manuel Velosa considera que a liderança na área da Nutrição em Portugal “reflete fielmente” a realidade da profissão, “com uma predominância feminina, alinhada com a maior representatividade deste género entre os inscritos na ON”. Contudo, “as profissões são para todos aqueles que, movidos pela vocação, escolhem exercê-las, independentemente do género”, frisa a presidente da direção da ANEN no mandato de 2024.

A posição de liderança que assume foi precedida por dois mandatos em que desempenhou funções no Departamento de Política e Relações Externas. Durante esse período, assinala a nutricionista estagiária, “tive a oportunidade de conhecer e contribuir de forma aprofundada para o trabalho desenvolvido junto dos estudantes, das entidades parceiras da ANEN e dos decisores políticos”. Este percurso foi marcado por um “crescente sentido de compromisso para com os estudantes de Nutrição, resultado do trabalho conjunto com os dirigentes com quem tive o privilégio de me cruzar ao longo deste tempo”.

Hugo Pereira, finalista da licenciatura em Dietética e Nutrição na ESTeSC, observa uma mudança no perfil dos estudantes: “Na minha turma, houve um aumento significativo no número de rapazes em comparação com anos anteriores”. Uma tendência que se deve ao crescente interesse pela nutrição desportiva, uma área em alta que atrai “mais homens para o curso, principalmente aqueles interessados em performance e saúde no âmbito desportivo”.

O membro da direção da ANEN na direção de 2024 acredita que o estereótipo de que os nutricionistas são sempre mulheres “era mais evidente no passado”. O futuro nutricionista diz nunca ter sentido qualquer tipo de preconceito ou discriminação. Pelo contrário, “por sermos uma minoria, noto que muitas vezes somos valorizados. O ambiente na área de Dietética e Nutrição tem sido extremamente acolhedor e atencioso”.