Dezembro fecha um novo ciclo para a Nutrição em Portugal. Com uma nova bastonária que promete mudar a Ordem, e um estatuto recentemente promulgado pelo Presidente da República, os profissionais entram num 2024 repleto de novas dinâmicas e estímulos que prometem ventos de mudança para o setor.
Em doze meses, foram vários os momentos de especial relevo que merecem recordação. Do drama em torno da competência de Nutrição Clínica por parte da Ordem dos Médicos, aos avanços consideráveis na identificação e perfil nutricional no Serviço Nacional de Saúde, passando pela isenção do IVA em produtos essenciais, estes são os principais destaques selecionados pela VIVER SAUDÁVEL (VS) ao longo de 2023.
Liliana Sousa, a bastonária do terreno
A palavra ficou para a posteridade, tal a quantidade de vezes que foi usada. “Terreno” esteve associado a Liliana Sousa durante toda a campanha para os órgãos sociais da Ordem dos Nutricionistas (ON), ao ponto de levar a candidata Bárbara Beleza a se assumir, a certa altura, como “todo o terreno”, de forma a procurar utilizar um termo de si já monopolizado. Sem sucesso, Liliana Sousa venceria a eleição e a propriedade da palavra.
Outrora membro da equipa de Fernando Pichel às eleições de 2019, apresentou-se como uma alternativa em finais de junho. A profissional na Unidade de Saúde de Matosinhos garantia, numa primeira entrevista com a VS, querer “recuperar o prestígio da profissão”, ao se posicionar, não como uma rutura – palavra que procurou sempre rejeitar – mas sim como uma “solução”, perante um conjunto de políticas com os quais não se revia.
Ao seu lado, caminhava com uma Lista B composta por caras menos mediáticas, na sua generalidade, o que lhe conferiu desde cedo uma ótica de sangue novo para a profissão. Numa segunda entrevista, dava conta de um Programa de Ação que abria a discussão acerca da autonomia para a prescrição de suplementos, nutrição artificial e MCDT, pedia um Internato para entrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS), e exigia uma maior transparência da ON para com os seus associados. Assim, assumiu o desafio de voltar a agregar a profissão.
No dia 14 de outubro, os nutricionistas foram à urnas e escolheram-na como a segunda bastonária da história da ON. Eleita com 49,4% dos votos– foram apenas 16 as cruzes a separá-la de Bárbara Beleza – viu a sua lista empatada no Conselho Geral e perdeu, também por pouco, o Conselho Jurisdicional. No fim do dia, a profissão mostrou-se dividida, e confiou em ambas as candidatas. Pelo que Liliana Sousa tem pela frente um mandato para comprovar que esta votação se pode traduzir numa união de diferentes ideias em prol da profissão.
Novo estatuto, novas realidades
A reforma das Associações Públicas Profissionais tinha por objetivo garantir menos restrições no acesso, mais transparência ou até uma autonomia reforçada, com a muito criticada introdução de um Órgão de Supervisão com membros externos à profissão. Uma reforma que de resto passou pelo Tribunal Constitucional, que não a colocou em causa. Do lado das Ordens Profissionais, foram várias as críticas a este documento, com acusações de ingerência e a demissão do coordenador da Reforma da Saúde Pública, contra a posição do Governo.
“Estado e Ordens estão condenados a entenderem-se”, dizia Manuel Pizarro no início do mês de junho, e semanas mais tarde garantia mesmo que o Conselho de Supervisão era “uma falsa questão”, já que a maioria de conselheiros estaria ligada à profissão (80%). Ainda assim, o Governo abriu a porta a novas alterações, em coordenação com as respetivas Ordens. No caso dos Nutricionistas, o medo pairava no atropelo do seu Ato por parte de outros profissionais. Para Alexandra Bento, na altura bastonária, isso representaria uma “desregulação da profissão”. A proposta não poderia, nunca, colocar em causa os nutricionistas e os interesses do cidadão.
À VS, Alexandra Bento dizia ainda em junho que “os timings impostos pelo Governo eram muito estritos”, mas que mesmo assim havia aspetos a celebrar, como a remuneração dos estágios de acesso à Ordem e a maior colaboração entre os formandos e o SNS. O Parlamento acabaria por aprovar a alteração dos estatutos das Ordens Profissionais em finais de julho, com apenas o voto favorável do PS, com maioria absoluta.
Uma petição, criada pela farmacêutica Paula Chambel, chegou mesmo a exigir independência das Ordens face ao poder político e, ainda hoje, algumas Ordens não chegaram a acordo com o Governo. Não é o caso da ON, uma vez que o seu estatuto já se encontra promulgado pelo Presidente da República. Alexandra Bento saiu assim da ON, entidade que criou, com um novo estatuto aprovado, e que “defende os interesses dos Nutricionistas”.
Serviço Nacional de Saúde, um conceito mais nutrido
Em finais de setembro, os nutricionistas davam um passo importante no sentido da sua afirmação no SNS e, em concordância, no Sistema Nacional de Saúde. A secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares, publicou no dia 27 o Despacho n.º 9984/2023, que alarga a identificação sistemática do risco nutricional a todos os níveis de cuidados do SNS. Serão contemplados os Cuidados de Saúde Primários, os doentes oncológicos acompanhados em contexto de ambulatório nos estabelecimentos hospitalares e os utentes das unidades de cuidados continuados que integram a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados.
O Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), chefiado por Maria João Gregório, será responsável por desenvolver um manual técnico de apoio à implementação deste Despacho, incluindo os modelos de aconselhamento breve previstos, e que dá resposta às medidas definidas no PNPAS 2022-2030, que prevê uma implementação da identificação sistemática do risco nutricional e da respetiva intervenção em todos os níveis de cuidados. Fica ainda responsável por acompanhar a sua implementação nas unidades de Saúde.
Prémios VS 2023: Maria João Gregório considerada a Nutricionista do Ano
Um mês depois, era anunciado o lançamento do “Dashboard – Perfil Nutrição para os Cuidados de Saúde Primários”. A ferramenta Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários (BI-CSP) passou a disponibilizar um Dashboard, onde constam os dados de produção da Consulta de Nutrição. Os profissionais podem assim analisar o número e tipologia de Consultas de Nutrição realizadas no CSP, o número de utentes com consulta, assim como os motivos e destinos de alta.
Mais uma vez, ao lado de outras entidades, o PNPAS faz parte desta medida. Por isso e muito mais, Maria João Gregório seria considerada a Nutricionista do Ano nos Prémios VIVER SAUDÁVEL 2023. “Quero partilhar este prémio com todos os que têm acompanhado o meu percurso profissional. Quero agradecer ao Pedro Graça, que é meu mentor, professor e meu amigo. Estes momentos convidam-nos a fazer uma reflexão e quando analiso o meu percurso, acho que tem tido tanto de fácil como de difícil”, referiu a 23 de novembro, no Casino Estoril.
Nutrição Clínica, o braço de ferro com os médicos
Com uma Ordem Profissional tão jovem, e um conjunto de organizações e definições legais recentes, a Nutrição encontra-se ainda há procura de espaço no Sistema de Saúde. Até lá, e como é sabido, esta é uma área onde os médicos, nomeadamente endocrinologistas, têm historicamente um papel importante para a Saúde Pública. Contudo, a especialização dos Nutricionistas abre-lhes espaço para assumirem a Nutrição Clínica como uma área onde, naturalmente, representam uma mais-valia imprescindível.
Em 2021, a Nutrição Clínica era anunciada como uma área curricular a ser introduzida nos cursos de Medicina em Portugal e, no mesmo ano, a Competência de Nutrição Clínica era criada pela Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos (OM). Em janeiro deste ano, uma Comissão Instaladora era a responsável pelos critérios de admissão, plasmados num documento que explica que a “Nutrição Clínica é a disciplina médica que tem por objetivo avaliar, prevenir, diagnosticar e tratar a malnutrição (excesso ponderal/obesidade e desnutrição, déficits seletivos de nutrientes) relacionada com doenças agudas e crónicas em todas as idades”.
A temática ganharia uma mediatização um mês depois. Em fevereiro, a Associação Nacional de Estudantes de Nutrição (ANEN) demonstrava “apreensão” e Leonor Quelhas Pinto, sua presidente, pedia esclarecimentos para garantir que o Ato do Nutricionista não era colocado em causa. Dias depois, a Ordem vinha “reiterar o seu compromisso na defesa intransigente da profissão de nutricionista”, e assumia uma “postura firme e serena” que, em última instância, poderia levar os médicos a tribunal.
Alexandra Bento teve então três dias seguidos de reuniões. Começou, no dia 15, por “esclarecer e salvaguardar os princípios que norteiam o exercício da profissão de nutricionista” junto da secretária de Estado da Promoção da Saúde, Margarida Tavares. Depois, a 16 de fevereiro, recebeu Leonor Quelhas Pinto e, por fim, reuniu-se com o na altura bastonário da OM Miguel Guimarães. O responsável demonstrou “solidariedade” e sublinhou que “esta competência não visa entrar na esfera de atuação dos nutricionistas”. A competência mantém-se.
A isenção do IVA, contra a inflação
A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, abriu espaço para uma inflação galopante que afetou os mais variados setores, em particular o da alimentação. Para fazer face ao disparar de preços, foi aprovada no Parlamento a isenção do IVA para um conjunto de alimentos essenciais, a partir do dia 18 de abril, até 31 de outubro. Alexandra Bento aplaudiria a medida “inovadora, que de alguma maneira ainda não se pôs em prática em nenhum outro país”, referindo-se ao IVA e à tentativa de fazer acordos com a produção e a distribuição.
Foram mais de 40 os produtos considerados essenciais e que contaram com o contributo do PNPAS na sua seleção, bem como na informação dos cidadãos acerca da melhor conjugação deste benefício com uma alimentação saudável. Cereais, derivados e tubérculos, hortícolas, frutas, leguminosas, lacticínios, carne, peixe e ovos, gorduras e óleos compõe a lista dos 44 produtos aprovados.
Em julho, o primeiro-ministro António Costa fazia um balanço positivo da medida, ao destacar a descida de preços nos produtos selecionados. No entanto, em setembro, face à manutenção de dificuldades pelas famílias, o Executivo decidia prolongar a isenção do IVA até ao final do ano.
Mesmo assim, espera-se que os portugueses paguem uma fatura mais elevada pela noite da Consoada. De acordo com a Deco Proteste, que elaborou uma cesta de 16 produtos que não podem faltar na mesa de Natal, a Consoada deste ano deverá ficar, pelo menos, cinco euros acima da despesa de 2022, ano em que a introdução do IVA zero em vários produtos não existia. Fatura poderá chegar aos 51,87 euros, com 4,91 euros adicionais.