A consulta da minha filha mais velha atrasou-se significativamente e porque o pequeno estômago dela já dava horas, optei por parar numa cafeteria próxima para comermos um lanche rápido. Depois de ser informado que já não havia pão para fazer uma sandes, foi com renitência que virei a atenção para as opções disponíveis. Passei os olhos rapidamente por alguns salgados e bolos de pastelaria, e reparei num bolo seco para fatiar. Perguntei à senhora da cafetaria que bolo era e ela, adivinhando a minha desconfiança, informou-me que se tratava de “bolo caseiro de cenoura”, apressando-se a acrescentar: “não leva açúcar, é feito só com mascavado!”. A minha filha, já habituada a ouvir estas conversas, não conseguiu conter o sorriso, enquanto olhava para mim cumplicemente.
Vem esta história a propósito de um fenómeno recorrente nos dias de hoje: a crescente fobia de uma parte significativa da população ao açúcar, sal, leite ou farinha com glúten. Com mais ou menos razão para tal, com mais ou menos informação, vemos cada vez mais gente determinada a abolir da sua alimentação opções com mais açúcar, sal ou gordura. Esta intenção é, à partida, de saudar e tem sido uma luta de vários anos das autoridades de saúde um pouco por todo o mundo. No entanto, estas preocupações com uma alimentação mais saudável nem sempre se traduzem em comportamentos promotores de saúde. Uma rápida vista de olhos por receitas “fit” ou “clean” publicadas nas redes sociais por influenciadores revela incoerências nutricionais ou vantagens duvidosas na seleção de ingredientes. Trocar manteiga por óleo de coco não resulta necessariamente em menor valor calórico. Assim como trocar açúcar refinado por mel, xarope da agave ou pasta de tâmaras, não significa eliminar os açúcares (mono- e dissacáridos) da receita (embora possa haver outros benefícios).
A consciência sobre os desequilíbrios nutricionais da nossa alimentação é um desafio grande para todos os que trabalham na promoção de melhores hábitos alimentares. É um processo complexo e, acima de tudo, demorado até se tornar consolidado. Primeiro, é necessário que a população esteja disposta a pensar naquilo que come; depois é preciso que consiga identificar qual (ou quais) o(s) desvio(s) nos seus padrões alimentares; e só depois se inicia o processo de, gradualmente, começar a mudar hábitos de forma sustentada. Naturalmente, se este processo não for robusto e os passos não se concretizarem todos, existe o risco de criar uma amálgama de noções sem sentido ou originar mudanças para hábitos que podem ser até menos bons que os anteriores. De facto, situações destas são observáveis, quer em consulta, quer no contexto de conversas informais: pessoas que foram sensibilizadas para a importância de fazer uma alimentação saudável, mas que acabam a mudar a sua alimentação de forma incongruente ou menos rigorosa. Será caso para dizer que de nutricionista e de louco, todos temos um pouco, já que atualmente há cada vez mais gente a decidir o que é “bom” para si, com base nas suas próprias noções de “saudável” ou “natural”. Pior ainda, e num preocupante mimetismo de outros movimentos anti ciência ou anti cultura, assistimos à proliferação de conselhos alimentares (supostamente saudáveis) dados por pessoas sem qualquer formação na área, sem qualquer suporte científico e, nalguns casos, em clara oposição às recomendações veiculadas pelas autoridades de saúde.
Acabámos por sair da cafetaria sem provar o tal bolo de cenoura, mas ainda hoje, sempre que nos cruzamos com publicidade a alguma receita “sem açúcar”, a minha filha recorda entre risos: “Sem açúcar, mas com mascavado!”. Para mim, é um lembrete de que a educação alimentar é um processo demorado mas possível, sobretudo para as gerações mais novas que estão a crescer melhor preparadas para “saber comer”.
Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição