A frase é atribuída a Paula Freitas (ao centro na imagem), empossada em fevereiro passado como presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM).
Em 16 líderes deste organismo, criado em 1949, é apenas a terceira mulher, e sucede a João Jácome de Castro, cujo mandato terminou em 2023. Em entrevista à VIVER SAUDÁVEL (VS), a endocrinologista faz um retrato das necessidades do setor, traça os pilares do futuro e realça o papel do nutricionista em equipas multidisciplinares.
VS – Com alguma distância desde a tomada de posse, como tem sido este primeiro mês?
Paula Freitas (PF) – Começamos por contactar todos os parceiros cooperativos e estamos a trabalhar com os novos grupos de estudo que queremos formar, com a nossa newsletter e com a nova revista da sociedade.
Tivemos dois dias desafiantes. Um foi o dia das hormonas, mas o mais desafiante foi o Dia Mundial da Obesidade. Vários elementos da direção da Sociedade estiveram envolvidos e houve uma grande presença nos meios de comunicação social. Estamos a trabalhar com todos os materiais de fundo, há todo um trabalho que ninguém está a ver, para prepararmos o nosso próximo congresso. Todos nesta direção encaram a tarefa como um espírito de missão, com muito prazer.
VS – Porque se candidatou a este cargo?
PF – A anterior direção desafiou-me e eu sou uma mulher que gosta de desafios. Achei que poderia dar o meu contributo, com um conjunto de outros elementos jovens e menos jovens. O nosso espírito é incluir todos, incluir todos os sócios que trabalham na área clínica, na ciência, na área translacional, do setor público e privado.
Queremos ser cada vez mais uma sociedade inclusiva, ter partilhas com outras sociedades e comunicar com o público em geral. Em Portugal, há muitas pessoas com valor, e nós queremos que os endocrinologistas portugueses tenham um maior reconhecimento a nível internacional. Queremos também continuar a desenvolver um registo nacional de doenças endócrinas e apostar na diferenciação de uma enfermagem especializada.
VS – Considera que a inteligência artificial deve estar mais presente no ensino.
PF – A inteligência artificial é e pode ser ainda uma melhor ferramenta. Há exemplos em que a inteligência artificial mostrou que pode ajudar os profissionais de saúde, pode ajudar a fazer melhores diagnósticos. No entanto nós, médicos, lidamos com pessoas, e continua a ser fundamental ouvir o doente. A inteligência artificial vai ser melhor que um mau médico, pode ser tão boa, ou melhor que um médico médio, mas nunca será melhor que um bom médio. Porque a medicina é ciência, mas também é uma arte. É uma excelente ferramenta para os alunos, para ensinar a pensar, quando bem utilizada.
VS – A tecnologia evolui muito rápido, por vezes não a conseguimos acompanhar. Considera que os profissionais de saúde devem ter algum receio relativamente a inteligência artificial?
PF – Há o bom uso e o mau uso de todas as ferramentas. Qualquer inteligência artificial que puser palavras na boca das pessoas, para o público em geral, pode ser extremamente perigoso. Portanto, tem que haver balizas e eu acho que o ideal seria utilizarmos tudo o que do bom a inteligência artificial tem. A medicina é a arte das probabilidades. Perante aqueles sintomas, aqueles sinais, é provável isto, é provável aquilo. Provavelmente a inteligência artificial fará isto muito mais rápido do que nós, do que o médico, mas depois também é necessário um juízo crítico.
VS – O Dia Mundial da Obesidade trouxe-nos informações preocupantes. Como combater este flagelo?
PF – Neste momento, em Portugal, 60% das pessoas vive com pré-obesidade e obesidade. No mundo, a obesidade tem aumentado em todos os países, mesmo nos países em vias de desenvolvimento. Não basta considerarmos a obesidade uma doença. Vivemos num mundo em que temos disponibilidade alimentar dia e noite, alimentos que muitas vezes são muito pobres nutricionalmente, mas muito ricos energeticamente e temos muito sedentarismo, temos stress, temos perturbação de sono, tudo é um choque entre aquilo que é o ambiente obesogénico e os genes.
Nós precisamos urgentemente de tratar as pessoas com obesidade, porque se nós não as tratarmos, elas vão ter múltiplas comorbilidades, aquilo que nós chamamos de 4M: mentais, mecânicas, metabólicas e imunitárias. E mais, esta pessoa com obesidade terá uma péssima qualidade de vida, vai ser muito menos produtiva para a sociedade. Temos o estigma, temos o preconceito, muitas vezes estas pessoas têm uma menor acessibilidade ao mundo do trabalho. Esta doença vai gerar pobreza, a pobreza vai gerar doença e nós vamos ter uma sociedade muito mais pobre, mas muito mais doente.
VS – De que forma a Nutrição e os nutricionistas são uma mais-valia nesta área e até que ponto representam um número inferior ao desejado?
PF – A nutrição é fundamental ao longo de toda a vida do indivíduo, ainda antes de ele ter nascido. Ensinar as pessoas a comer corretamente é uma missão ao longo de toda a vida. E aí os nutricionistas têm um papel fundamental, não só na prevenção da doença, como para o tratamento dessas pessoas.
Em relação ao número, é manifestamente insuficiente. Seria necessário ter mais nutricionistas, a vários níveis, não só nos cuidados primários, mas também nas consultas especializadas.
VS – Em 2023, a Nutrição Clínica originou uma quezília entre a Ordem dos Médicos e dos Nutricionistas. Como avalia esta situação?
PF – O conhecimento deve ser transversal. Mas mais do que estarmos uns contra os outros, devíamos todos trabalhar em equipa, é sempre melhor para o nosso doente. A competência em Nutrição Clínica dentro da Ordem dos Médicos é bem-vinda, todos os médicos devem ter conhecimentos, sem excluir os nutricionistas, pelo contrário. Precisamos de todos.
Em relação a algumas áreas, é muito mais aquilo que nos une, do que aquilo que nos separa. E se estivermos todos arrumados para o mesmo lado, vamos ter muito melhores soluções para resolver o problema dos doentes, é muito melhor do que andarmos a pensar em divisões.