“Meus”? 1766

Ainda recentemente, durante uma conversa com colegas, alguém usou a expressão: “os meus pacientes”. É algo que já todos ouvimos e que, talvez, muitos de nós também já dissemos. “Aos meus pacientes, recomendo …”. “Os meus atletas fazem …”. Mas embora seja uma expressão usual e aparentemente inócua, vale a pena refletir sobre o significado inerente a estas palavras, em particular no que diz respeito à forma como se aplicam na descrição da prática clínica.

Desde logo, é importante pensar em que medida podemos dizer que os pacientes são “nossos”. Com que certeza pode um nutricionista assegurar que os utentes da sua consulta o escolheram a si? São pacientes do nutricionista ou do local onde trabalha? Se um nutricionista trabalhar num hospital público ou numa unidade de saúde familiar, para a qual os utentes são referenciados, terá sido escolhido? E num clube desportivo, os atletas escolhem o nutricionista? Oiço com frequência colegas assegurarem que os pacientes são “seus” e não do local onde trabalham. Mas tendo em conta a variedade de fatores que influenciam as nossas escolhas, como se pode assegurar que as pessoas que nos surgem em consulta nos escolheram a nós, pelas nossas qualidades, acima de qualquer outro fator? Quantas vezes será o nutricionista, per se, um fator de decisão mais importante que o preço da consulta, os acordos com seguros, a data ou local da consulta, ou a referenciação de alguém? São questões difíceis de responder…

Mas voltemos à expressão “meu”. Será que o seu uso é sinal de conquista pessoal, na medida em que os clientes são “meus” porque, devido ao meu valor, os consegui angariar e/ou manter? Ou será antes uma forma de afeto, de consideração, por aqueles que, por qualquer razão, acabaram a ter uma consulta connosco? Talvez uma boa forma de avaliar o real sentido da expressão seja em função do contexto em que é usada. Se o contexto em que é proferida é positivo (o paciente perdeu peso, ou o atleta conquistou um troféu), o nutricionista estará orgulhoso e refere-se aos indivíduos que acompanha como os “meus pacientes”, ou os “meus atletas”. Mas, e quando corre “mal”? Não me lembro de alguma vez ter ouvido dizer “os meus pacientes não conseguem perder peso” ou “os meus atletas não conquistam um título há 5 anos”. Serão os utentes dos nossos serviços apenas “nossos” quando são bem sucedidos? Ou, na verdade, nunca foram “nossos”?

Num texto frequentemente atribuído a Saramago, escreve-se que um filho “é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar os nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e aprendermos a ter coragem.”. Talvez suceda o mesmo com os “nossos” pacientes ou atletas. Indivíduos com quem nos cruzamos profissionalmente, e com quem podemos, se a isso estivermos dispostos, aprender a ser não só melhores nutricionistas, mas também melhores pessoas. Indivíduos que nos devem fazer repensar a forma de trabalhar, com modéstia e discrição no sucesso, e com humildade e honestidade nos fracassos. Afinal, se cada utente dos nossos serviços nos foi “emprestado” para esta nobre missão, poderemos alguma vez dizer que são “nossos”?