A nutrição é uma ciência multidisciplinar, que pretende investigar a relação entre os alimentos (e nutrientes) e o metabolismo, no sentido da prevenção da doença e/ou manutenção e melhoria do estado de saúde. Naturalmente, esta relação é altamente complexa dada a variedade de fatores externos (ambientais) e internos (metabólicos, sexo, idade, etc) que a influenciam. Igualmente complexa é a sua análise.
As metodologias tradicionais de recolha de dados sobre consumo alimentar (ex. diários alimentares ou questionários de frequência alimentar) apresentam grandes fragilidades, essencialmente por dependerem da memória descritiva de quem relata aquilo que habitualmente come ou que comeu num determinado momento. Neste sentido, estes métodos tradicionais permitem apenas estimar consumos e, a partir daí, especular sobre o impacto dos alimentos no estado de saúde do indivíduo, o que leva frequentemente a conclusões com fragilidades sobre essa relação, por parte de quem interpreta os resultados.
Por outro lado, com a atualização permanente das ciências da nutrição, o uso das tabelas de composição alimentar que estão atualmente em vigor torna-se questionável. Ou seja, ainda que os dados de ingestão alimentar sejam precisos, como sabemos que a ingestão de determinados alimentos se reflete na absorção de determinados nutrientes? Será que a “tradução” e interpretação das tabelas de composição alimentar é aplicável a todos da mesma forma, independentemente do estado de saúde individual, idade ou sexo? Ainda não é possível dar uma resposta a estas questões com base na evidência atual, mas é importante que a comunidade científica se debruce sobre estas questões, antevendo o futuro da investigação nutricional.
Como consequência da fragilidade dos dados obtidos com estas metodologias de “diagnóstico” alimentar, deparamo-nos frequentemente com resultados científicos variáveis ou até contraditórios que, muitas vezes, acabam por subestimar o real impacto e importância da nutrição no metabolismo. E mais crítico, estas ambiguidades podem ter um impacto significativo na qualidade e credibilidade da ciência em nutrição, de forma global.
A evolução da ciência na área da nutrição requer estratégias holísticas e baseadas em redes de interações que possam revelar as relações dinâmicas entre o nutriente ou composto nutricional e o organismo numa escala de tempo e espaço. Felizmente, a tecnologia atual já permite aceder a este tipo de dados, recorrendo a áreas como a metabolómica, microbiota, genómica (“ómicas”) e outras abordagens de quantificação e identificação de moléculas, incluindo material genético. As “’ ómicas” estão assim a remodelar e revolucionar a ciência na área da nutrição, tornando-a mais precisa e assertiva.
Recentemente, cientistas do Imperial College, em Londres, Reino Unido, em colaboração com outras instituições académicas dos Estados Unidos da América, finalizaram um projeto de larga escala que consistiu na elaboração de um teste rápido (5 minutos) de identificação da qualidade da dieta através de uma amostra de urina. O teste permite produzir uma “impressão digital”, que identifica com especificidade e precisão aquilo que um indivíduo come e, mais importante, quais os metabolitos que produz em consequência da sua ingestão alimentar. Este trabalho, financiado pelo U.S. National Institute of Health and Health Data Research UK, consistiu na quantificação de 46 metabolitos na urina de 1,848 adultos americanos e na sua associação a parâmetros específicos da dieta destes indivíduos. Os investigadores compararam os metabolitos recolhidos na amostra rápida de urina com análises precisas da ingestão alimentar dos indivíduos e colheitas de urina de 24h. Os autores verificaram uma correlação clara entre a proporção de determinados metabolitos na urina e a ingestão de alguns alimentos, incluindo determinados tipos de fruta, monossacáridos (açucares simples), carne vermelha e frango, por exemplo. O estudo permitiu ainda associar a presença de metabolitos na urina e as suas concentrações com a ingestão de nutrientes específicos como vitamina C ou cálcio. Análises subsequentes dos dados permitiram ainda relacionar os metabolitos urinários com condições patológicas específicas como hiperglicemia ou hipertensão arterial.
Segundo os autores, a análise de metabolitos urinários permite criar um score nutricional individual, cujo valor fornece indicação sobre a qualidade da dieta, fornecendo assim um parâmetro mesurável de identificação do impacto da dieta no metabolismo e na saúde. Os autores destes estudos pretendem agora validar o score nutricional produzido pelo teste rápido e a sua relação com doença cardiovascular e outras patologias não comunicáveis.
Outro estudo multicêntrico recente, pela Universidade de Copenhaga e Universidade de Auckland, levado a cabo numa população de indivíduos com excesso de peso, mostrou que a relação entre 2 metabolitos urinários específicos –anserina e carnosina – permite diferenciar com grande precisão a ingestão de carne vermelha versus carne branca.
Embora estes estudos ainda preliminares não permitam alterar todo o universo atual de recolha de dados sobre ingestão alimentar e impacto na saúde, sobretudo no âmbito da saúde pública e epidemiologia, a evidência atual mostra-nos que as ciências da nutrição poderão estar a entrar num novo paradigma de precisão e rigor. Entretanto, nutricionistas e investigadores devem ter uma visão crítica da evidência na relação entre nutrição e saúde.
Marta Silvestre, 3696N
Professora da NOVA Medical School
Investigadora CINTESIS, ProNutri group