Liliana Sousa: A candidata “do terreno” que quer “recuperar o prestígio da profissão” 3537

Pela primeira vez na história, marcada por Alexandra Bento, a Ordem dos Nutricionistas prepara-se para escolher uma nova cara. Liliana Sousa (48 anos; 0433N), nutricionista na Unidade Local de Saúde de Matosinhos, quer ser a nova bastonária e representar a classe profissional.

É licenciada em Ciências da Nutrição pela Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto, pós-graduada em Gestão de Serviços de Saúde pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto, e especializada em Administração Hospitalar pela Escola Nacional de Saúde Pública, formação recentemente concluída pela Universidade Nova de Lisboa.

Natural de Gondomar, é casada e mãe de três filhos (uma delas estuda Nutrição). Gosta de viajar, de exercício físico, e de promover momentos em família e com amigos, assumindo-se como uma pessoa tolerante. Em entrevista à VIVER SAUDÁVEL, a pré-candidata anunciada (7 de agosto marca a data de entrega de candidaturas, sujeitas a validação) desvenda ao que vem e qual a sua visão para os próximos quatro anos ao comando da Ordem dos Nutricionistas.

Porque decidiu apresentar-se como candidata a bastonária da Ordem dos Nutricionistas?

Tenho uma experiência em termos profissionais na área prática, no terreno. Já passei pelas três áreas, mais predominantemente na clínica, onde trabalho em exclusivo neste momento. Avançar para um desafio deste género tem muito que ver com este conhecimento sólido, não só da realidade da profissão, mas também do potencial que lhe reconheço. Volvidos todos estes anos de existência da Ordem, parece-me que estamos muito aquém daquilo que poderíamos ser. É com sentido de missão que a minha bagagem profissional é colocada ao serviço da profissão.

A Ordem dos Nutricionistas tem apenas 12 anos de vida, que caracterizou com uma “visão pobre e desviada das necessidades reais da Nutrição e dos Nutricionistas”. Como avalia a ainda curta história desta Associação Pública Profissional?

Tenho metade da profissão sem Ordem e outra metade com ela. Faço parte desses profissionais que ansiaram durante muitos anos pela existência da Ordem dos Nutricionistas. Saímos da faculdade com esse discurso, iniciamos a nossa prática profissional sempre a aguardar que essa entidade pudesse vir defender-nos, no sentido de trazer maior prestígio à nossa profissão. E a verdade é que, como em qualquer projeto que se inicia, o primeiro mandato nunca seria de provas dadas, era preciso montar uma casa. Onde sinto que as coisas poderão ter começado a rumar para esse caminho de visão mais empobrecida, menos virada para o exterior, é efetivamente a partir do segundo mandato, e principalmente neste último, em que se tornou demasiado evidente que o rumo que a Ordem assumiu para a profissão não correspondeu às necessidades que os profissionais tinham. Tenho a visão de quem esteve no terreno e sofreu as consequências dessas expectativas que acabaram por não acontecer.

A que expectativas se refere?

Sentirmos que a profissão estava a ser defendida. E quando falamos em defesa da profissão, estamos a falar na defesa daqueles que servimos. A Ordem tem de ser essa entidade que está por trás de nós, salvaguardando os nossos interesses, com vista a que os interesses da população possam ser salvaguardados. Isso não se sentiu. A Ordem, quando vinha ter com os profissionais, vinha no sentido de uma visita breve aos colegas no terreno, fazer com que isso fosse notado para o exterior, mas não havia uma retribuição prática daquilo que levava. O resultado é este com que nos deparamos atualmente. Continuamos a ter um potencial que não está a ser aproveitado. Existe ainda uma disparidade muito grande naquilo que são as condições entre profissionais no terreno. A expectativa seria que a nossa Ordem se tivesse preocupado com isso, tivesse eventualmente até demorado metade do tempo da sua existência a construir alicerces mais seguros, para que hoje pudéssemos estar todos a usufruir desse resultado.

A sua candidatura apresenta um projeto de continuidade ou de rutura com estas políticas?

Acima de tudo, pretende ser um projeto de solução. Não gosto de colocar as coisas no sentido da rutura, de ser disruptiva relativamente a algo com o qual possa não estar de acordo, e queria apresentar a minha discordância. Gostava, e naturalmente que é essa a minha intenção, de mostrar que perspetivamos soluções nas várias áreas e fragilidades que encontramos.

Que projeto é esse? O que tem Liliana Sousa a trazer de novo à Ordem dos Nutricionistas?

Liliana Sousa, antes de tudo, traz uma equipa consigo. Não sei trabalhar de outra forma, gosto de me sentir envolvida por profissionais nos quais acredito. Estamos na área clínica, comunitária, saúde pública, investigação, docência, na alimentação coletiva. Temos também um trabalho importantíssimo no bem-estar e na promoção da saúde, nomeadamente nos ginásios, onde a atividade do nutricionista tem vindo crescer. Espero poder trazer as soluções que a profissão precisa. É inegável para todos que talvez este seja o período mais crítico que a nossa profissão atravessa. Teve já os seus períodos, com certeza, conturbados. Que possamos ir a tempo de trazer de volta a nutrição para os nutricionistas, de sermos reconhecidos enquanto os profissionais mais qualificados na área da nutrição e da alimentação. Sentir-me-ei sempre como uma nutricionista do terreno, que teve o seu percurso, que ama de paixão a profissão, porque acho que com este amor se consegue de facto acreditar que é possível.

O seu programa ainda não foi apresentado. No entanto, quais são as suas prioridades?

O programa está na minha cabeça desde o momento em que passei a perceber que a Ordem precisava de um rumo diferente. Queremos perceber de que forma é que a própria formação dos profissionais pode ser melhorada. Ser uma Ordem parceira, colaborativa com as várias entidades, sem as quais não é possível fazer-se um bom trabalho, como as faculdades, que é muito importante que sejam próximas de nós, pois estão a formar aqueles que vão ser os nossos futuros elementos. A questão do emprego. E quando falamos em emprego, falamos em carreira, um tema que quase parece tabu para a nossa Ordem. Isto acaba por ser um caminho no sentido de recuperarmos o prestígio da profissão, que já existiu. Estando no terreno há 25 anos, e tendo tido oportunidades que hoje não existem, acabo por dizer com alguma amargura que a Nutrição devia ter crescido.

Não há um sentimento de identificação à casa como sua, pelo contrário, há até uma maior distância dos profissionais em relação à Ordem e vice-versa. A Ordem passou a ser aquela entidade à qual se tem de pagar quotas anuais para se poder exercer a profissão. E eu gostaria muito de ver esse conceito destruído, para reconstruir um conceito em que as pessoas contribuem para a manutenção da sua Ordem por se identificarem com ela.

Finalmente, a transparência. Este vai ser um dos nossos pontos-chave. Sentimos uma Ordem muito fechada no que diz respeito a informações de interesse para todos. Estes últimos tempos foram exemplo disso, os profissionais sentiram-se alheados daquilo que foi o processo de revisão dos estatutos.

Já abordamos o segundo mandato de Alexandra Bento onde, para si, começaram os problemas. Não ponderou candidatar-se mais cedo ou este é o momento certo?

Há quatro anos participei no projeto do Dr. Fernando Pichel, fui convidada por ele. Na altura não estava ainda disponível para tomar uma atitude deste género. O que me fez agora dar este passo foi sentir que este último mandato foi o mais fraturante, desestruturante.

A pandemia é muito usada como desculpa para aquilo que não se fez, mas eu estive no terreno durante todos os dias da pandemia. Não fui para casa um único dia. Estive a trabalhar na efetiva linha da frente e, portanto, continuei, eu e vários colegas. Nós estivemos a trabalhar em condições, como se sabe, difíceis. Tivemos de nos reinventar para conseguirmos continuar a fazer o nosso papel, que era cuidar o melhor possível dos doentes que nos entravam no hospital. Fizemos muita diferença e é uma coisa que a nossa Ordem devia ter transmitido para fora. Devia ter estado junto a nós nessa fase e eu não o senti. Não perceberam sequer o papel dos nutricionistas nessa fase. Nunca a nossa Ordem nos perguntou se estávamos bem, se precisávamos de apoio. Nunca nos fez sentir como outras Ordens fizeram.

 Tem agora pela frente uma campanha eleitoral. Como pretende chegar aos seus colegas?

A campanha só se pode iniciar depois de termos, de facto, as listas aprovadas. Estamos numa fase de pré-campanha, em que já manifestamos a nossa intenção de candidatura. Tenho uma vantagem, ou pelo menos um ponto positivo, que é o facto de trabalhar numa Unidade Local de Saúde. Estou na de Matosinhos, que é a mais antiga do país, praticamente cresci com ela. Nesta fase, o importante é a aproximação aos jovens, às várias entidades onde os nutricionistas trabalham, a áreas que não estão vinculadas às três grandes áreas de atuação. Este é um trabalho oficioso, importantíssimo, que não pretende ser um trabalho de protagonismo ou de visibilidade.

Escreveu online: “Não entrarei em jogos de poder. Não comprarei apoios em troca de promessas infundadas. Não precisarei de usar trunfos desleais”. O que quer dizer com isto?

Acima de tudo é uma afirmação, não é uma crítica, nem um apontar de dedo intencionado. É criar uma linha que tem de ser bem vincada com as ligações partidárias das Ordens Profissionais. Quase que à partida se acha que uma Ordem Profissional tem de ser partidarizada e isso tira muito à essência daquilo que é o conceito original de uma Ordem.

Apontou que “a falta de imparcialidade no tratamento de assuntos de interesse maior para os nutricionistas em sede de Conselho Geral por parte da presidente da Mesa do mesmo Conselho [Bárbara Beleza], veio evidenciar a conivência com a Direção”. Que momentos foram esses?

Li as atas dos Conselhos Gerais. Não sou conselheira, nunca tive qualquer tipo de ligação direta a um órgão da Ordem. Mas na realidade, até por uma questão de preparação para este passo que estava a dar, senti necessidade de conhecer com os meus olhos aquilo que foi acontecendo nas várias reuniões. Considero que a posição atual da professora Bárbara Beleza, mantendo o lugar de presidente do Conselho Geral e assumindo já uma candidatura, não seja muito confortável. Não me reveria nesse papel. Para estar bem comigo, provavelmente teria abdicado de uma posição para sentir que a isenção me pudesse ser de facto garantida no passo que iria assumir. É uma opinião pessoal, não faço qualquer juízo de valor relativamente à legitimidade de o fazer. A professora Bárbara Beleza podia ter tomado algumas posições a favor daquilo que seriam os interesses maiores dos profissionais e da população naquela altura.

Consegue identificar as temáticas?

Por exemplo, o ato do nutricionista. Esse documento tão importante, tão relevante e que infelizmente por não ter sido, a meu ver, tratado com a responsabilidade, atenção e seriedade que devia, acabou por nos trazer uma situação bastante incómoda com a Competência em Nutrição Clínica pela Ordem dos Médicos. A sua tomada de posição, na altura, não defendeu o interesse dos profissionais. A presidente da Mesa de Conselho Geral podia ter feito a diferença.

A Nutrição é uma profissão jovem, ainda mais em Portugal. Porque escolheu esta área?

É tão jovem que eu própria praticamente não a conhecia quando concorri à faculdade. Como tantos colegas, queria medicina, queria trabalhar num hospital. E curiosamente quando fui ao gabinete de acesso ao Ensino Superior, desloquei-me ao balcão e fui buscar o livrinho dos cursos existentes. E, antes do curso de medicina, estava o curso de Ciências da Nutrição. Iria fazer aquilo que me parecia que ia gostar. Aquela escola [Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto], adotou-me decididamente, porque nunca mais pensei em abraçar outra área.

Como já referiu, a sua carreira é feita no terreno…

Quando vim trabalhar para o Hospital Pedro Hispano, já existia o projeto de criação da Unidade Local de Saúde, acabamos por ser muito integrados no conceito. Enquanto estagiária académica, foram-me atribuídas algumas responsabilidades, não estávamos ligados exclusivamente a uma área ou a uma enfermaria, já existia a prática de a cirurgia, a medicina, a neurocirurgia, virem pedir a nossa colaboração. E para além disso, tínhamos também a tarefa de responsabilidade de supervisão dos serviços de alimentação aos profissionais e utentes, a confeção era própria. Acumulei estas duas funções, clínica e alimentação coletiva durante três anos, sensivelmente.

Em 2000, fui admitida no concurso de estágio de especialidade da carreira de técnico superior de saúde no Hospital Pediátrico de Coimbra, mas acabei por realizá-lo na Maternidade Bissaya Barreto. O meu gabinete funcionava na cozinha do hospital e, portanto, tinha uma ligação muito próxima à empresa, aos seus colaboradores. Ainda durante o estágio de especialidade da carreira de técnicos superiores de saúde, para além da acumulação entre as áreas clínica e restauração/alimentação coletiva, desenvolvi atividades na Nutrição Comunitária, participando em programas de educação alimentar, promoção da saúde e saúde escolar. Quando regressei do estágio, já éramos Unidade Local de Saúde. Entrei nos programas de educação alimentar e promoção de saúde.

Como reagiram os seus colegas ao receberem a notícia da sua intenção de candidatura?

Eu acho que não foi surpresa para alguns deles. Talvez a novidade até tenha sido para quem não estava dentro do serviço [de Nutrição]: farmacêuticos, enfermeiros, médicos, administrativos e colegas de outras áreas. O próprio Conselho de Administração recebeu a notícia com um acolhimento e um carinho que me enterneceu, dizendo-me que era um orgulho para a instituição poderem de facto sentir que um dos seus profissionais tinha sido escolhido para um desafio desta dimensão.