O mercúrio (Hg) ocorre naturalmente no ciclo biogeoquímico da Terra, mas também a partir de atividades humanas. O Hg criado em processos naturais não pode ser controlado. No entanto, as libertações de Hg causadas por atividades humanas, são de extrema preocupação. O alto potencial de vaporização do Hg, leva à emissão de mais de 95% do Hg criado, para a atmosfera, em estado gasoso: Hg0 atmosférico.
Independentemente da fonte, o Hg0 atmosférico, torna-se eventualmente carregado e precipita como mercúrio inorgânico (Hg2+) depositando-se no solo e na superfície aquática. Aquando do contacto com a biomassa aquática, as bactérias convertem o Hg2+ em metilmercúrio (MeHg+) que será bioacumulado ao longo da cadeia alimentar.
Na verdade, o consumo de peixe representa a principal via (80-99%) de exposição humana ao Hg, via MeHg+, que é a espécie mais comumente encontrada em peixes e que é a mais tóxica.
O conhecimento da distribuição de um elemento entre as suas espécies químicas, ou por outras palavras, a especiação química de um elemento é de extrema importância pela diferente toxicidade de cada espécie, como é o caso do MeHg+ que é consideravelmente mais tóxico que o seu precursor inorgânico (Hg2+).
Em estudos epidemiológicos realizados em populações que consomem elevadas quantidades de pescado, foram observadas aberrações cromossómicas como resultado do efeito genotóxico do MeHg+.
Desta forma, se por um lado, o elevado valor nutricional do peixe faz dele um componente ideal de uma dieta saudável e equilibrada para o ser humano, sendo uma excelente fonte de proteína e de muitos outros nutrientes, como ómega-3, DHA e EPA, por outro, a exposição dos seres humanos ao MeHg+ representa um risco para a saúde principalmente devido aos seus efeitos neurotóxicos, sendo considerado um grande problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde. A toxicidade do MeHg+ decorre de sua alta permeabilidade nas membranas biológicas, potente bioacumulação, estabilidade e eliminação dos tecidos a longo prazo e consequente capacidade de biomagnificar para níveis tróficos mais elevados.
A exposição humana mais extensa a MeHg+ aconteceu na Baía de Minamata, no Japão. Estima-se que 27 toneladas de Hg tenham sido despejadas na Baía de Minamata entre 1932 a 1968, o que levou a que milhares de pessoas sofressem de sintomas graves de envenenamento por Hg, associados a lesões do sistema nervoso central, causado pelo consumo de peixes ou marisco contaminados com até 50 ppm de Hg. O peixe é, portanto, um alimento para o qual devem ser tomadas medidas adequadas para minimizar os riscos relacionados com o seu consumo.
O interesse na toxicidade do Hg começou após este acontecimento. Existe uma crescente consciencialização de que esta, está intimamente ligada à alta afinidade de ligação do Hg com o Selénio (Se), podendo este ter um efeito mitigador da toxicidade do Hg.
O Se é um dos elementos mais raros encontrados na crosta terrestre, encontrando-se em 70º lugar em abundância, entre os outros 88 elementos que ocorrem na natureza. É considerado um elemento de propriedades contraditórias. A faixa das concentrações essenciais do Se é estreita e, se por um lado, uma ingestão excessiva através da dieta pode ser tóxica (por exemplo, selenose), por outro lado, uma baixa ingestão pode resultar em deficiência crônica e, por vezes, fatal (por exemplo, Doença de Keshan). Além da dose ingerida, os efeitos do Se dependem, também, fortemente da espécie química.
Várias formas de Se ocorrem em alimentos ou em suplementos alimentares, incluindo, entre as mais comuns, a selenometionina (SeMet) e a Se-metilselenocisteína (MeSeCys), como formas orgânicas, e o selenito e o selenato, como formas inorgânicas. Geralmente, as espécies inorgânicas de Se são mais tóxicas do que as espécies orgânicas. Vale a pena ressaltar, que o consumo de peixe contribui em cerca de 40-50% da dieta total de Se, principalmente como SeMet.
Assim, apesar de ser provavelmente o elemento mais estudado ao longo dos quase 200 anos, desde que foi identificado pela primeira vez, em 1817, por Jöns Jakob Berzelius, ainda há pouca concordância sobre seu papel no meio ambiente e na saúde. Sendo considerado um elemento de duas faces, o nome dado pelo cientista Suíço, surge de Selene que significa a deusa da lua.
A posição do Se na Tabela Periódica confere-lhe interações biológicas com o enxofre, assim como com o arsénio e o fósforo.
Embora a interação do Hg com proteínas/enzimas que contêm enxofre seja relativamente bem compreendida, a sua interação com compostos de Se, como as selenoproteínas, não está completamente esclarecida. No entanto, parece que as espécies de Se podem desempenhar um papel na desintoxicação do Hg mitigando, portanto, a exposição humana à contaminação por MeHg. As evidências atuais sugerem que o efeito protetor do Se contra o Hg pode estar relacionado com a quantidade de Se disponível. Tal significa que as concentrações molares de Se e Hg nos tecidos alvo precisam de exceder uma estequiometria de 1:1 para serem eficazes. Subjacente ao paradigma central de que a exposição ao Hg não é, ou pouco é, perigosa quando o Se do tecido está em excesso (molar), sugere-se que a proteção do Se ocorra através da quelação de Hg. O Hg apresenta alta afinidade para o Se, levando à precipitação do HgSe, uma espécie que parece ser metabolicamente inerte. Além disso, sugere-se que o efeito protetor do Se depende de sua disponibilidade para a síntese de selenoproteínas.
O Projeto MERSEL-FISH, visando a avaliação do antagonismo do Hg-Se no impacto do consumo de pescado e consequente efeito na saúde humana, envolve um estudo de exposição de peixes a espécies de Hg e Se; um estudo de avaliação do impacto do tratamento culinário de espécies de peixes predadoras sobre o destino do Hg e Se, e, ainda, um capítulo desafiante que trata do desenvolvimento e validação de um inovador método analítico para a especiação simultânea de Hg e Se nas amostras de peixes, que integram o projeto.
Os trabalhos desenvolvidos a nível global, catalisados pela conferência de Minimata, como o do projeto MERSEL-FISH, vão produzir dados analíticos robustos pelo aprofundamento do rigor da medição. Estes dados permitirão uma análise de risco beneficio mais sólida e apoiar a tomada de decisão na área da legislação e dos teores máximos admissíveis, tendo em consideração não só a toxicidade do Hg mas também o efeito mitigador de nutrientes como o Se. Em conclusão estes estudos são de grande importância para desmistificar as doutrinas de diabolização do pescado e continuar a sua promoção na dieta mediterrânea.
Mariana Mendes Ribeiro
Departamento de Alimentação e Nutrição, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge