Foi amplamente noticiado nos últimos dias o conjunto de alterações que o Governo pretende aplicar ao funcionamento das Ordens Profissionais, nomeadamente a mudança nos seus estatutos. No Conselho de Ministros do passado dia 25 de maio, o Governo aprovou mesmo os novos estatutos de oito ordens profissionais (Biólogos, Contabilistas Certificados, Despachantes Oficiais, Fisioterapeutas, Nutricionistas, Psicólogos, Médicos Veterinários e Assistentes Sociais), remetendo para breve a aprovação dos restantes. Mas que reflexão, debate ou envolvimento dos profissionais representados e regulados por estas Ordens houve em todo o processo? Atendendo aos prazos dados pelo Governo para que as Ordens remetessem os seus comentários à proposta inicial – 5 dias, dos quais apenas 3 úteis! – parece claro que há pouco interesse da tutela em realmente discutir as medidas que vão afetar, em particular, profissionais de saúde e os utentes dos seus serviços. Aliás, os comentários públicos às reservas manifestadas pelos representantes de várias Ordens tiveram como resposta um certo tipo de demagogia mais habitual nos meios político-partidários: “É preciso combater o vírus do corporativismo!”.
Talvez seja útil fazer um breve resumo do que são as Ordens Profissionais e para que servem. De acordo com o regime jurídico que lhes é aplicável, “são associações profissionais de direito público e de reconhecida autonomia pela Constituição da República Portuguesa, criadas com o objetivo de promover a autorregulação e a descentralização administrativa, com respeito pelos princípios da harmonização e da transparência”. Visam “a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e a salvaguarda do interesse público através da autorregulação de profissões cujo exercício exige autonomia técnico funcional e independência, bem como capacidade técnica”. É também claro que “apenas podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, estando expressamente afastado o exercício de funções próprias das associações sindicais”. As Ordens Profissionais servem assim para garantir que profissionais devidamente capacitados estão aptos para exercer atividades que exigem competências específicas e que a sua atuação é continuamente vigiada. Isto cumpre o propósito maior da defesa de todos aqueles que têm de recorrer a esses profissionais e, em última análise, é um garante do funcionamento da Sociedade como a concebemos. Pode alguém discordar do princípio inerente às formação das Ordens (a primeira, a dos advogados, foi criada em 1926!)? Então, porquê mudar a Lei, ou até extinguir Ordens?
Aparentemente, o Governo levou à Assembleia da República as propostas de alteração da Lei das Ordens, com base em recomendações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) e da Autoridade da Concorrência. São assinaladas supostas dificuldades e barreiras no acesso às profissões, e são criticados os mecanismos de autorregulação (é criticado que apenas membros da profissão façam parte dos Conselhos das Ordens). Pode discutir-se se há aspetos a melhorar no funcionamento das Ordens e, o caso específico dos estágios de acesso, será um desses pontos. Uma das bandeiras acenadas na divulgação das alterações à Lei é a obrigatoriedade dos estágios serem remunerados e terem a sua duração limitada. É um tema complexo e, dificilmente, decidido “por decreto”. A remuneração de um estágio é correta por princípio (todo o trabalho deve ser pago), mas na prática pode dificultar ainda mais a disponibilidade para receber estagiários por parte de várias entidades ou orientadores – só quem já orientou estágios sabe o tempo e dedicação despendidos com alguém que está a dar os primeiros passos na profissão. Acaba-se então com os estágios de acesso à Ordem? Neste caso, qual seria o critério para considerar alguém apto para o exercício da profissão? Apenas a formação académica ou, como se tem visto nas notícias, qualquer um pode exercer qualquer profissão, uma consequência da desregulação? São perguntas difíceis mas pertinentes, cujas respostas variam bastante entre profissões e que exigem análise e discussão prolongadas. No caso dos nutricionistas, significa que vamos passar das queixas (legítimas) de dificuldades na realização de estágios remunerados para a contestação (igualmente legítima) de qualquer um poder exercer atos de nutricionista? Há, seguramente, um meio termo, e a participação de todos os nutricionistas nas instâncias próprias é mais necessária que nunca.
É fácil perceber que os temas relacionados com os estatutos das Ordens Profissionais estão longe de se resolver com medidas decididas de forma praticamente unilateral pelo poder político. As propostas finais de redação da Lei ainda não são públicas, mas vamos esperar que no Governo alguém faça uma mínima ideia do que são as Ordens para que, pelo menos, ponham as ideias em ordem!
Por Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição