Entrevista originalmente publicada na edição de novembro-dezembro da revista VIVER SAUDÁVEL.
Depois de abordar temáticas essenciais para a profissão, como o estágio de acesso e as especialidades (ver primeira parte da entrevista), a bastonária da Ordem dos Nutricionistas fala sobre a Indústria e o nutri-score, o cheque-nutricionista e o vazio com que se deparou quando assumiu o cargo.
VS — Apesar de estar no cargo há apenas um ano, já se deparou com dois Governos. As negociações prioritárias para a profissão foram prejudicadas por esta mudança?
LS — Foram atrasadas, fundamentalmente. Não cheguei a trabalhar com o anterior Governo — ele cai poucos dias depois de iniciar o mandato — mas cheguei a ter reuniões de trabalho com a Tutela, num período de transição. Não tive uma pasta de transição aqui [na ON], e havia uma série de compromissos em que precisei de ir buscar às entidades alguma informação, no sentido de perceber que trabalho estava a ser feito…
VS — Quando chegou à Ordem, deparou-se com um vazio?
LS — Eu aqui tive um vazio. Vivemos em democracia e esta suporta as mudanças e as transições para diferentes linhas de ação. Quando aqui cheguei, não tinha essa informação, mais ainda num período muito difícil do ano. Chego e tenho um Plano de Atividades e Orçamento para apresentar em menos de dois meses. Fazer um Plano de Atividades sem saber nada do passado é complicado. Não que não saibamos o que queremos, mas temos de conhecer a estrutura que existe.
Os colaboradores eram os mesmos, os departamentos existiam. Para mim, não foi um problema. Quem sofreu com isto foram os colaboradores, sou muito honesta. Houve um desrespeito por quem cá esteve. E quem foi desrespeitoso foi quem o fez, que não conseguiu manter o respeito pela posição que representou durante tantos anos e, acima de tudo, pelos membros que esperavam, fosse qual fosse a Direção, que esta informação fosse garantida, porque estamos a trabalhar para a profissão, não para nenhum de nós.
VS — A implementação do cheque-nutricionista é o pontapé de saída para uma relação frutífera de reconhecimento do valor da profissão, em várias áreas?
LS — Mal de mim dizer que não. O grande motor deste projeto foi o Ministério da Juventude e Modernização. A ministra ligou-me e iniciou-se um trabalho em parceria. Não recebi apenas a informação a dizer-me “é para fazer assim e vocês assinam por baixo”. Remetemos bibliografia e alguns estudos com evidência do risco associado, do ponto de vista nutricional, a este grupo de estudantes, que serviu depois para construir o protocolo que veio a dar-lhe corpo. Posso dizer que o nome foi dado por nós. A disponibilização e gestão da lista de prestadores é da nossa responsabilidade. Os colegas podem inscrever-se e sair da lista sempre que queiram. E temos também um interlocutor da Ordem a trabalhar com os Serviços de Ação Social das Universidades.
Mas temos outros pontapés de saída, nomeadamente com o ministro da Educação, com quem já começámos a trabalhar num projeto-piloto, no sentido de poder avaliar a importância da presença de um nutricionista nas escolas, em permanência. Foi uma proposta nossa que recebeu toda a abertura por parte do ministro e temos um grupo formado pela Ordem a trabalhar neste projeto que vai ser apresentado no final deste ano para poder, se for aprovado, ser implementado em 2026.
VS — Um internato em Nutrição é ainda uma miragem?
LS — Sem dúvida! Aliás, é uma pena que ainda seja uma miragem, não está nada feito. Os nossos colegas farmacêuticos conseguiram implementar o processo, mas foram anos de trabalho e de negociação com a Tutela para conseguirem lá chegar. Neste momento, de uma forma muito ágil, conseguem abrir uma nova especialidade, porque a estrutura está criada. Nós estamos a anos-luz dessa situação, ainda estamos a começar a falar disso. A sua celeridade, ou não, vai depender da vontade de quem dirige iniciar este processo. Estamos a falar de uma estrutura que do ponto de vista orçamental tem de passar a ter um cabimento no Orçamento do Estado. Infelizmente, o internato é algo que não teve ainda a sua primeira pedra. Vamos ver se conseguimos, pelo menos, iniciar este processo.
VS — O Nutri-Score, implementado como “medida de saúde pública” pelo anterior Governo, gerou muita discussão pública. A reversão pelo atual Executivo foi correta ou desnecessária?
LS — Eu não tenho de opinar acerca de decisões governamentais contraditórias. Temos de nos focar, acima de tudo, na ferramenta. Colocou-se o Nutri-Score numa posição muito desconfortável, porque a dada altura aquele que se achava ser o salvador da informação nutricional, passou a ser o malfeitor. E ele nunca foi uma coisa nem outra. Continua a faltar um ponto importantíssimo nesta equação: a educação da população. O Nutri Score e o Semáforo Nutricional não são ensinados nas escolas. Vamos às universidades sénior e também não encontramos nenhuma disciplina de literacia alimentar. Há uma série de ações em bairros sociais, de integração… falamos de sustentabilidade, mas, do ponto de vista prático, não vejo ações que visem explicar como se organiza um frigorífico. Nessa altura, problemas como este não seriam tão graves, porque a população seria livre de escolher um produto mau, mas tinha as bases para fazer essa escolha.
VS — Na abertura do 9.º Congresso da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares (FIPA), o seu presidente, José Tomás Henriques, criticou uma “espécie de ciência mercantilista” que “procura diabolizar o alimento transformado”. Como analisa estas declarações?
LS — Não gosto de ser extremista em nenhuma situação. Eu estava lá, portanto ouvi essas declarações. Não me cabe fazer um comentário específico sobre elas. É algo que me deixa triste, perceber esta diabolização da relação entre a Indústria e a Ciência. Que a Indústria tenha interesse económico, não vejo problema.
A questão é quando chegamos ao ponto de acharmos que só se ganha dinheiro fazendo mal à população. E é aqui que estamos. Porque é que a Indústria tem de ter esta posição quase firmada pela opinião pública de que só quer o mal da saúde? Temos variadíssimos colegas a trabalhar na Indústria, isso não pode ser ignorado. Claro que terão um código de conduta associado aos interesses da Indústria, mas com certeza não estão lá a dizer “ponham mais açúcar”.
Muitas empresas implementaram serviços de apoio aos colaboradores que ultrapassam a medicina de trabalho. Temos vários colegas que já iniciaram um processo do nutricionista de trabalho. Não temos isso no Estado, mas temos privados que já o estão a fazer. Não podemos achar que a Indústria é só má. Também não podemos, naturalmente, achar que quem traz políticas associadas a evidência não sabe o que está a fazer.
VS — Há pouco dizia que o cheque-nutricionista partiu do Estado. Recentemente, Filipa Horta foi nomeada diretora-geral de uma empresa farmacêutica, e Ana Gabriela Cabilhas foi eleita a primeira deputada nutricionista. Tem esperança no futuro?
LS — Se não tivesse, não estava aqui. Os nossos colegas, há 40 anos, não tinham tempo para andarem a pensar em fazer trabalhos de muito mérito, fosse na Indústria, fosse na política. Eles tinham, acima de tudo, de abrir caminho para quem se sucedeu. É natural que décadas depois os profissionais comecem a querer mais. E por mim falo. Sempre fui nutricionista por vocação, mas a área da gestão era interessantíssima para mim. Também estudei para isso, já numa fase pós-graduada.
Falo da Filipa Horta de coração porque somos muito amigas desde a faculdade. É uma colega que tem um mérito inquestionável, com muita garra, com muita vontade. A Ana Gabriela Camilas é exatamente o mesmo. É uma colega que foi, desde sempre, dirigente. Corria-lhe com certeza no sangue essa vocação. Muito nos orgulha termos, pela primeira vez, uma nutricionista representada na Assembleia da República.
VS — Que balanço faz deste primeiro ano de mandato?
LS — Foi um ano de reconhecimento do território. Nos primeiros três meses, tive de me adaptar a uma nova realidade, de reconhecer a casa para onde passei a vir todos os dias e não pude virar as costas às obrigações que tinha de cumprir. Em paralelo, não podíamos ignorar o projeto que nos tinha trazido aqui. Quando digo que a Ordem não é da bastonária, tem a ver com o culto da imagem, com o qual não me identifico, mas também com o trabalho de equipa. E não é só o trabalho que fizemos para fora, é todo um trabalho interno de restruturação. [Os colaboradores da ON] tiveram de se adaptar a uma nova forma de trabalho. São muitas exigências num curto espaço de tempo.
O que aconteceu a seguir à entrega do Relatório de Atividades e Contas foi a revisão de todos os regulamentos. Posso dizer — não por uma questão de vitimização, até porque foi por vontade minha — que, apesar de ter tirado dias de férias, não tive um único dia efetivo, porque senti que neste ano em particular não me podia afastar da tomada de decisões.
Temos algumas angústias que vamos partilhando com os colegas: duas em particular. Uma tem a ver com os estágios e depois temos o exercício ilegal. Pretendemos divulgar os resultados de todas as denúncias que nos vão chegando, algo que nunca foi feito. Agora, é importante perceber que a Ordem não pode atuar sobre essas pessoas que não são nutricionistas. Temos de demonstrar à população os riscos deste tipo de informação.