Com mais uma época festiva a chegar ao fim, são muitos os que procuram agora redimir-se dos excessos alimentares e consequentes quilos a mais. Sempre que se debate o controlo de peso, nomeadamente o ajuste na ingestão calórica, há uma questão que acaba por surgir inevitavelmente: existem alimentos que “não engordem”? Esta reflexão sobre alimentos não calóricos, levanta questões mais amplas: existem alimentos não calóricos, não nutritivos, cujo propósito seja apenas permitir o prazer de comer, sem aportar energia ou nutrientes? Algo inócuo, que sirva tão só para mastigar e engolir, permitindo a estimulação sensorial associada à comida (cheiro, textura, sabor), mas sem qualquer função fisiológica? No fundo, existem ou podemos desenvolver alimentos não nutritivos?
É difícil encontrar uma definição absoluta de alimento não nutritivo, desde logo porque um alimento, em princípio, contém nutrientes. Assim, a expressão “alimento não nutritivo” é usada frequentemente para designar alimentos com pobre perfil nutricional, ou seja, deficitários em nutrientes benéficos (como vitaminas, minerais ou fibras), mas ricos em gordura, sal ou açúcar. No contexto do combate à obesidade e problemas associados, entende-se que estes alimentos não sejam nutritivos, por fornecerem calorias com poucos nutrientes associados – por isso, são muitas vezes chamados de “calorias vazias”. No entanto, embora desequilibrado nutricionalmente, um snack frito fornece sempre nutrientes (hidratos de carbono, lípidos) e, no limite, pode alimentar alguém numa situação de emergência. Por exemplo, um naufrago esfomeado poderia obter calorias e nutrientes a partir de um chocolate, bolo ou aperitivo. Imaginemos agora uma versão destes alimentos, que geralmente consumimos por prazer, que não tivesse nutrientes nem calorias. Imaginemos que uma qualquer tecnologia inovadora permitia dar sabor e textura a algum tipo de fibra ou substância não nutritiva, para recriar a experiência sensorial de saborear um alimento, sem, no entanto, ingerirmos qualquer caloria ou nutriente. Seria despropositado?
Esta ideia de ingerir algo apenas pelo prazer já se encontra intrínseca nalguns comportamentos alimentares, embora de forma não absoluta. Beber café ou chá, apesar de contribuir para a hidratação e poder fornecer substâncias com alguma funcionalidade (por exemplo, o efeito estimulante da cafeína), é sobretudo um ato de prazer. O consumo de bebidas alcoólicas não surge da necessidade de hidratar ou ingerir nutrientes (o álcool, apesar de calórico, não é um nutriente), mas sim de saborear algo ou até de projetar uma determinada imagem pessoal em contexto social. E o hábito de mascar pastilha elástica, apesar de não contemplar diretamente a ingestão de um alimento (a pastilha não se engole), também é uma forma antiga de sentir sabor na boca, sem o propósito de obter calorias ou nutrientes.
A ideia de produzir “alimentos” (será que se podem designar alimentos se não alimentam?) apenas pelo prazer de os saborear, levanta também questões éticas relevantes. Faz sentido, num Mundo onde ainda se passa fome, desenvolver produtos apenas para satisfazer a vontade de comer? Mesmo que estes produtos fossem seguros e inócuos, como justificar o investimento no seu desenvolvimento e os custos com a sua produção? Afinal, as fábricas destes alimentos poderiam estar a produzir alimentos nutritivos, para pessoas que precisam de comer… Um ponto na defesa deste tipo de produtos alega que poderiam seriam aliados no controlo de peso, pois permitiriam encher o estômago com algo sem calorias, contribuindo assim para um menor aporte energético. No fundo, poderiam ter uma função similar aos balões intragástricos, que são utilizados há alguns anos para controlar a saciedade (e o peso) em pessoas com obesidade. Mas seriam estes produtos uma solução ou apenas uma forma de adiar o problema real, que é a necessidade de adequar a ingestão alimentar? Ao contrário dos alimentos reformulados, que permitem adequar a ingestão de determinados nutrientes, estes produtos poderiam ser consumidos de forma totalmente indiscriminada, o que levanta questões sobre possíveis impactos a nível emocional, nomeadamente nos gatilhos do prazer ou da saciedade. Por exemplo, se fosse possível ingerir alimentos sem nutrientes, desenhados apenas para o prazer, que espaço sobraria no estômago para os alimentos nutritivos, necessários a um bom estado de saúde? E como se educaria o paladar para os alimentos necessários, uma vez que seria possível comer apenas o que nos apetecesse sem consequências no peso? Assistiríamos a um outro tipo de desnutrição, neste caso derivada da carência de alimentos nutritivos?
Talvez não seja ainda em 2022 que produtos cujo objetivo não é alimentar ou hidratar estejam disponíveis na prateleira do supermercado. Mas é interessante perceber como vão os nutricionistas encarar produtos destes. Afinal, aquilo que tanta gente deseja no início de mais um ano – poder comer à vontade sem qualquer impacto nutricional – seria benéfico ou prejudicial na sua saúde e controlo de peso?
Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição