A enzima de conversão da angiotensina 2, mais conhecida pelo acrónimo ECA2 (ACE2- Angiotensin-converting enzyme 2), tem merecido destaque na comunidade científica na situação atual da pandemia coronavírus-19 (COVID-19).
A ECA2 é uma ectoenzima ancorada na membrana citoplasmática, está inserida na membrana celular, apresenta atividade catalítica sobre diferentes substratos, e quando submetida à ação de metaloproteínases, como ADAM17, perde o seu domínio exterior dando origem à ECA2 solúvel.
A ECA2 foi identificada em 2000 no decorrer das investigações sobre as enzimas, os peptídeos e os recetores envolvidos no Sistema Renina-Angiotensina (SRA). De facto, a sua principal função é a contra regulação da ativação do SRA, sendo responsável pela conversão da Angiotensina I em Angiotensina 1-9 e, principalmente, da Angiotensina II em Angiotensina 1-7. Deste modo, a ECA2 assume um papel major ao mitigar o efeito pró-inflamatório mediado pela Angiotensina II, e mais ainda, ao originar a Angiotensina 1-7 que desencadeia uma resposta anti-inflamatória.
Ao longo destes 20 anos, os estudos revelaram que o mRNA da ECA2 está presente em quase todos os órgãos, contudo a sua expressão proteica ocorre principalmente no pulmão, coração, rim, fígado, cérebro, intestino e tecido adiposo participando no metabolismo de outros peptídeos vasoativos, no transporte intestinal de aminoácidos e no metabolismo das proteínas β-amilóide no cérebro.
Em 2003, descobriu-se que a ECA2 é o recetor do coronavírus SARS (SARS-CoV) e, em 2020, do novo coronavírus SARS-CoV-2. Os vírus infetam as células do hospedeiro através da proteína S que se divide na subunidade S1, responsável pela ligação ao recetor membranar, e na subunidade S2, responsável pela fusão com a membrana celular, tendo o domínio de ligação ao recetor do SARS-CoV-2 maior afinidade.
A ligação do SARS-CoV-2, não só permite a infeção do indivíduo, como diminuí a concentração de ECA2 disponível, e consequentemente aumenta o rácio de Angiotensina II/Angiotensina 1–7. A Angiotensina II é um mediador inflamatório que através da via sinalização de NFkB induz a expressão de várias citocinas inflamatórias, que ativa o fator de crescimento do tecido conjuntivo e que através das espécies reativas de oxigénio promove a ativação de macrófagos que, por sua vez, são secretores de citocinas inflamatórias. Entre estas citocinas, destaca-se o TNF-α, responsável pela polarização dos macrófagos no fenótipo M1, pró-inflamatório, criando um círculo vicioso que potencia a ocorrência do “cytokine storm” e que se pode manifestar na síndrome de ativação macrofágica.
De facto, os acontecimentos descritos potenciam a fibrose pulmonar e a inflamação grave, com aumento da permeabilidade vascular, culminando na síndrome respiratória aguda grave (SARS), característica da COVID-19. Contudo, são também acontecimentos comuns a diferentes patologias como a aterosclerose, diabetes mellitus, hipertensão e hiperlipidemia, em que o estado de inflamação exacerbado interfere com o sistema imunológico, reduz a capacidade de combater a infeção, e poderá explicar a maior severidade da COVID-19 aquando da coexistência de comprometimento metabólico, e vice-versa.
Por último, não poderia deixar de referir dois aspetos extremamente relevantes nesta inter-relação entre a ECA2 e a maior prevalência de COVID-19 em indivíduos com doenças metabólicas:
– o “eixo intestino-pulmão”, pois a expressão da ECA2 em toda a superfície do lúmen do trato gastrointestinal, principalmente na primeira porção, faz deste um potencial reservatório e local secundário para a infeção entérica por SARS-CoV-2. Estudos descrevem que a maior ou menor expressão intestinal da ECA2 está associada à maior ou menor integridade da barreira intestinal, respetivamente. A infeção por SARS-CoV-2 compromete a integridade da barreira intestinal, levando à translocação bacteriana e disseminação sistémica de endotoxinas e metabolitos microbianos, o que poderá prejudicar a resposta imunológica do indivíduo ao SARS-CoV-2. Mais ainda, as várias patologias metabólicas caracterizam-se pela disbiose intestinal, diminuição da diversidade e densidade de microrganismos, e inflamação sistémica agravando o quadro clínico dos indivíduos com COVID-19, determinando a severidade e o desenvolvimento da patologia. Por outro lado, um estudo piloto já descreveu quais as alterações no microbiota em indivíduos com COVID-19 ao longo do período de hospitalização, e verificaram que várias espécies do género Bacteroides, que diminuem a expressão intestinal da ECA2 no intestino de Ratinho, correlacionam-se inversamente com a carga de SARS-CoV-2 nas amostras fecais;
– o tecido adiposo é um dos locais com maior expressão da ECA2 e cuja expressão está aumentada no adipócito hipertrófico, pelo que serve como reservatório do vírus e tem capacidade de secretar Angiotensina II. Mais ainda, a sobrexpressão de citocina prós-inflamatórias no tecido adiposo visceral contribui ocorrência do “cytokine storm” e comprometimento da resposta imune ao SARS-CoV-2, explicando a maior prevalência de COVID-19 nos indivíduos obesos.
Assim conclui-se que a ECA2 assume um papel preponderante na infeção pelo SARS-CoV-2, no desenvolvimento e severidade da COVID-19 e que a modulação quer do microbiota intestinal, quer do tecido adiposo, pela adoção de estilos de vida mais saudáveis, poderá ser determinante, também, no desenvolvimento desta patologia, devendo ser tida em consideração nos trabalhos de investigação futuros que visam o desenvolvimento de estratégias preventivas e terapêuticas adequadas para a COVID-19.
Inês Barreiros Mota
Nutrição e Metabolismo da NOVA Medical School | Faculdade de Ciência Médicas, UNL
Nutricionista (3718N) Investigadora ProNutri, CINTESIS