Coordenador da Reforma da Saúde Pública demite-se contra lei das ordens e estatutos 1698

O coordenador da Comissão para a Reforma da Saúde Pública demitiu-se por discordar da nova lei-quadro das ordens profissionais e do novo estatuto da Ordem dos Médicos, que classifica de “ofensiva liquidacionista” do Governo contra os médicos.

Em declarações à agência Lusa, Mário Jorge Neves considera que a Ordem dos Médicos deveria tomar “uma posição enérgica em defesa da sua existência e da própria classe”.

Caso contrário, “pode entregar a chave, que não está lá a fazer nada”, acrescenta Mário Jorge Neves, cuja demissão foi inicialmente noticiada pela CNN.

Numa carta enviada na terça-feira à noite à secretária de Estado da Promoção da Saúde, a que a Lusa teve acesso, Mário Jorge Neves explica os motivos da sua demissão, sublinhando o desacordo com a chamada nova lei das ordens e com a proposta de texto para os novos estatutos da Ordem dos Médicos, elaborada pelo Governo.

“Estas medidas governamentais constituem uma violenta e escandalosa tentativa de liquidação de elementares competências legais da Ordem dos Médicos e de ingerência política e governativa na autonomia e independência técnico-científica da profissão médica”, escreve o médico, especialista em saúde pública.

Em declarações ainda antes de receber a proposta de estatutos, o bastonário da Ordem dos Médicos manifestou-se preocupado com a proposta do Governo, afirmando que “pode estar em causa” a missão e o papel da classe, admitindo eventuais medidas de luta.

Na carta, Mário Jorge Neves diz que, na nova legislação, “as disposições da livre concorrência sobrepõem-se a tudo, esmagando as garantias da qualidade do exercício da profissão médica e os níveis de segurança dos atos próprios dos médicos”.

Em nome dessa livre concorrência – acrescenta – “até chega ao ponto de possibilitar o exercício da profissão médica sem necessidade de inscrição na Ordem dos Médicos”.

“Estas medidas passam a ficar registadas como o exemplo dramático da capitulação político-ideológica do Partido Socialista ao neoliberalismo mais extremista de inspiração thatcheriana”, insiste.

Como exemplo das preocupações levantadas pelos novos estatutos, Mário Jorge Neves aponta a criação de “estágios” e o facto de os médicos, no início da sua atividade profissional, deixarem de ser considerados médicos internos e passarem a ser “estagiários”.

O contrato de trabalho passa a ser um “contrato de estágio” e o salário mensal passa a ser “bolsa de estágio mensal”, uma situação que o especialista considera mais do que suficiente para se poder concluir que o Governo “está a escancarar as portas para, em seguida, poder ser liquidada a Carreira Médica e ser estabelecida uma extrema precariedade laboral a nível dos médicos mais jovens”.

“A minha intervenção política e cívica processou-se sempre sem ‘amarras’ e tendo como pedras angulares a defesa e dinamização do SNS [Serviço Nacional de Saúde] como pilar humanista e solidário de uma sociedade democrática, bem como na defesa da Carreira Médica como mecanismo inquestionável de garantia da qualidade do exercício da profissão médica”, escreve.

Quanto à nova lei das ordens, sublinha: “As disposições visam instaurar o clima do comissariado político cavaquista inaugurado em 1988 com as nomeações político-partidárias para os vários níveis de gestão dos serviços públicos de saúde e que tem sido um decisivo fator de erosão e debilitamento do SNS”.

“Existir um chamado provedor de serviços não médicos, estabelecer a criação de um órgão de supervisão para regular o exercício da profissão médica, presidido por um cidadão não médico e constituído maioritariamente por não médicos, que vai ao extremo de intervir na definição de regras dos estágios profissionais e até das próprias especialidades e, ainda, estabelecer órgãos disciplinares integrados por não médicos, constituem um somatório monstruoso destas medidas governamentais”, acrescenta.

“Nem nos tempos do regime ditatorial deposto em Abril de 1974 houve descaramento político para ir tão longe”, insiste.

Lembra que, em Novembro de 1972, “o fascismo procedeu à anulação da eleição dos dirigentes da Secção Regional Sul da Ordem dos Médicos, a polícia política de então (PIDE) ocupou a sede da Ordem dos Médicos em Lisboa, prendeu vários dirigentes e encerrou as instalações, nomeando em seguida um comissário político na altura designado ‘curador’”.

“São estes os antecedentes inquietantes que nos trazem à memória tempos negros de ódio aos médicos e às suas organizações representativas”, afirma Mário Jorge Neves, acrescentando: “A gravidade brutal destas medidas impõe à minha consciência cívica um imperativo de intervenção enérgica na luta que, inevitavelmente, se avizinha”.