Começar o ano bem acompanhado: microbioma e neuroprotecção 786

Por Conceição Calhau, professora catedrática da NOVA Medical School; Nutricionista, especialista em nutrição clínica, 0572N

 

Começamos um novo ano com mais publicações científicas na área do microbiota intestinal, uma delas do grupo do Eran Elinav, como sempre, numa excelente revista científica Cell Chemical Biology. Um importante artigo que reúne a evidência científica sobre eixo intestino-cérebro. Esse fenómeno de “modulação remota” do sistema nervoso é, sem dúvida, um dos mais fascinantes e promissores do atual cenário científico.

Nos últimos anos, o campo da investigação sobre o microbioma intestinal tem avançado de maneira surpreendente sustentando mais a relação entre dieta, microbioma intestinal e saúde mental. A evidência acumulada revela que o microbioma intestinal não apenas influencia o funcionamento do próprio processo digestivo, mas também pode modular processos neuroniais centrais e periféricos, com impacto quer no neurodesenvolvimento, em fases mais precoces da vida, como, e aqui um desafio e oportunidade, nas mudanças funcionais ao longo da vida associadas à idade, à maior longevidade. Alterações da dieta, alterações do microbioma podem, por exemplo, estar associadas a doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer, como a sintomas depressivos ou a depressão.

Os potenciais fatores moleculares discutidos pela investigação atual, os metabolitos produzidos pelos microrganismos intestinais, ligam estilos de vida, dieta, disbiose à doença, seja ela obesidade, seja demência. Esses compostos, muitas vezes subprodutos da atividade bacteriana, têm a capacidade de atravessar a barreira hemoencefálica (BHE) e alcançar o sistema nervoso central, onde podem influenciar processos biológicos neuroniais de forma direta. Essa descoberta sugere que o microbioma pode ter um papel muito mais significativo na saúde cerebral do que imaginávamos. Além disso, não são apenas os efeitos diretos no cérebro que estão em estudo.

Alguns desses metabolitos podem sinalizar diretamente aos nervos periféricos, quer ao nível do simpático quer do parassimpático, atuando como neurotransmissores ou modulares de funções neuroniais. Eles também podem afetar a resposta imunológica, alterando a maneira como o sistema imunológico interage com o sistema nervoso e, consequentemente, influenciando a vulnerabilidade para estadios de disfunção, compromisso neuronial, até doenças neurológicas.

Assim, os mecanismos de ligação entre o que se passa no ecossistema microbiano do intestino e o cérebro, serão sobretudo de 3 tipos: modulação da sinalização neuronial periférica, modulação direta ao nível do SNC ou, de forma indireta modulando metabolitos sistémicos que influenciam o SNC (atravessando a BHE). Para se perceber e como exemplo, os ácidos gordos de cadeia curta (AGCC), como o butirato e o acetato, por afinidade a recetores membranares (GPCR) como o GPCR43, expressos em neurónios entéricos, protegem os efeitos neurotóxicos do composto salsolinol.

Este composto é formado por reação entre a dopamina e o acetaldeído (com uma toxicidade dopaminérgica consequente ao consumo de etanol). Mais, existem metabolitos microbianos que são eles mesmos neurotransmissores como será o caso do glutamato e do GABA que bactérias como Lactobacillus plantarum (produtoras de glutamato) e Lactobacillus brevi (produtoras de GABA) que, entre outros efeitos, regulam a motilidade intestinal, a secreção por parte das células enteroendócrinas e ainda a síntese de muco. O microbioma intestinal influencia os níveis de serotonina que por sua vez, no SNC, afeta o estado de humor, o apetite e o sono. Atualmente coloca-se já a hipótese de que nos casos de long-term COVID, menores níveis de serotonina sistémica podem, em parte, sustentar alterações na memória e até algum declínio cognitivo.

Recordando os resultados do nosso estudo em doentes com COVID19 (publicado no Frontiers Microbiology 2021), em que a disbiose relacionou-se com pior prognóstico de doença COVID19, faz sentido especular que, provavelmente, foram doentes, os que sobreviveram, com mais risco de quadros de long-term COVID. Se a serotonina sistémica, produzida pelo microbiota, não atravessa a BHE, ela terá também efeitos centrais por interação vagal. Sabe-se que nos doentes com doença inflamatória do intestino, estão descritos níveis mais baixos de serotonina, o que compromete os efeitos vagais e por isso o conhecido risco para alterações no comportamento, cognição e memória. Também podemos associar que uma disbiose se associa a vulnerabilidade para diferentes condições desfavoráveis do metabolismo ligadas não só a resistência à insulina e inflamação crónica, como também por uma maior presença do isómero D do ácido lático, em vez do isómero L, em que o isómero D está mais associado a disfunção metabólica, Um microbiota com disbiose tem muitas vezes também grande contributo para uma maior produção de amónia, por exemplo com associação à falência renal mas também a neurotoxicidade.

Relativamente à função de barreira da BHE, sabemos que metabolitos do microbioma podem aumentar a sua permeabilidade e outros a sua integridade, tais como o LPS ou mesmo a TMA com neurotoxicidade ou, o butirato com efeitos opostos de proteção e melhoria da função de barreira. A produção intestinal microbiana de H2, que dentro da célula anula o radial anião hidroxilo, explica efeitos anti-oxidantes, anti-inflamatórios, anti-apoptóticos e por isso neuroprotetores. A vitamina B12 e IPA, atravessam a BHE e apresentam proteção ao stresse oxidativo mitocondrial ao nível neuronial e da micróglia. Já o LPS faz o efeito oposto. Ácidos biliares secundários atravessam a BHE exercendo efeitos diretos a nível neuronial. Vitaminas lipossolúveis como a K2 (produzida pelo microbiota), atravessam a BHE, influenciando a nível neuronial a morte por apoptose por influenciar a função mitocondrial e o stresse do retículo endoplasmático. A produção intestinal, por determinadas bactérias, de aminoácidos ramificados (valina, leucina e isoleucina), que atravessam a BHE, pode também influenciar a síntese de neurotransmissores como dopamina, adrenalina e noradrenalina.

Por último podemos ter uma ligação intestino-cérebro por influência no sistema imunitário. Por exemplo, metabolitos do triptofano, que modulam o sistema imunitário, podem ser muito relevantes enquanto potenciais ativadores dos recetores de arilo (AhR) em células da microglia e em astrócitos, limitando a ativação pela via do NFkB. Na doença de Alzheimer, temos já uma associação da acumulação de placa amiloide e a falha na ativação ao nível deste recetor (AhR).

Claro que a somar a toda esta amplitude de efeitos de modulação intestino-cérebro, não podemos esquecer o papel dos AGCC na regulação epigenética por inibirem as desacetilases das histonas.

Num contexto de aumento das doenças neurodegenerativas, a investigação sobre o microbioma pode ser a chave para um tratamento mais eficaz e personalizado. Ao modular o microbioma, talvez possamos influenciar positivamente a saúde do cérebro e abrir portas para tratamentos que, hoje, parecem distantes. A interconexão entre intestino e cérebro é uma área promissora, e o futuro das neurociências, da medicina e da clínica pode muito bem passar por um maior entendimento do funcionamento do eixo (intestino-cérebro) e qual o papel da dieta.

À medida que a ciência evolui, a esperança é que novas terapias surjam, levando a um tratamento mais eficaz de doenças neurológicas e ampliando a capacidade de tratar e, quem sabe, até prevenir essas condições devastadoras.