Coisa adiada, não está terminada 371

Por Rodrigo Abreu, Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados; Fundador do Atelier de Nutrição®

 

Tem sido um dos temas quentes entre uma boa parte dos nutricionistas – o estágio de acesso à Ordem. As mudanças na nova lei que regula as Ordens Profissionais tiveram impacto também na realização dos estágios e, se já havia quem contestasse o modelo anterior, as alterações impostas pelo novo enquadramento só contribuíram para aumentar a discussão. Desde logo, não deixa de ser curioso que, sendo um tema que não impacta diretamente os nutricionistas já inscritos na Ordem, tenha merecido tanta atenção e debate. É, por isso, uma boa prova do sentido de responsabilidade e da preocupação com a profissão por parte da maioria dos nutricionistas. Mas afinal o que se alterou para o assunto estar a ser agora tão debatido?

Em 2023 foram impostas às Ordens Profissionais uma série de alterações aos seus regulamentos e funcionamento, com a intenção de reduzir a burocracia e os entraves no acesso e prática das profissões reguladas por Ordens, como é o caso dos nutricionistas. Convém não esquecer que, se a intenção por trás desta nova lei (que resulta de recomendações da Comissão Europeia, da OCDE e da Autoridade da Concorrência) é de louvar, a forma como o processo foi conduzido pelo poder político foi absolutamente desastrosa. Com os calendários impostos para a redação e publicação da nova Lei, foi impossível a auscultação das Ordens e dos seus profissionais, que poderiam ter dado valiosos contributos para adequar as mudanças pretendidas pelo governo e pelos nutricionistas.

Uma das questões que sempre esteve presente na discussão sobre os estágios à Ordem foi a da remuneração. Sou um acérrimo defensor de que todo o trabalho deve ser remunerado, mesmo que em período formativo. Precisamente por isso, é importante considerar também a remuneração de quem orienta o estágio. É preciso ter noção que, na maioria das vezes, o estagiário não tem ainda conhecimento aplicado que lhe permita total autonomia nas tarefas que deve realizar, sendo necessário tempo e dedicação do orientador! Tendo em conta que estas tarefas de orientação frequentemente se acrescem ao trabalho normal do orientador, não deveria este trabalho extra ser também pago?

Seria, por isso, importante que a discussão sobre a remuneração do estágio à Ordem não se resumisse a uma certa narrativa de que os estagiários são mão-de-obra barata. Convém não esquecer que vivemos num País onde o salário médio bruto é de €1640, e onde a percentagem de trabalhadores a receber o salário mínimo nacional é superior a 20%. São ordenados muito abaixo daquilo que é desejável (e digno!), sobretudo para uma fatia crescente de pessoas com curso superior. Mas é a realidade incontornável do País, e afeta profissões que vão dos Técnicos de Emergência Médica, aos Médicos, passando por Polícias, Bombeiros ou Professores.

Perante a incapacidade de se encontrarem suficientes estágios remunerados, discute-se agora a possibilidade de os mesmos deixarem de ser necessários. Da mesma forma que havia boas intenções para estabelecer uma remuneração mínima aos estagiários, também parece agora boa ideia simplesmente acabar com o estágio (substituindo-o por período formativo, ou não). Mas, que lições já nos deu o mundo real e como as podemos aplicar para as dificuldades atuais?

Deixando de haver obrigatoriedade de estágio, que entidades estarão dispostas a contratar alguém que saiu da universidade sem qualquer (ou com muito pouca) experiência em contexto de trabalho? E em que condições salariais? Para mais, quando há nutricionistas que, pelo menos, já realizaram um estágio de acesso à Ordem… Não ter um estágio (ou um seu equivalente) será, para muitos, mais uma desvantagem num mercado de trabalho já saturado e incapaz de pagar os salários que justamente almejam aqueles que investiram na sua formação académica. Acabar com os estágios pode facilitar o acesso à profissão, mas provavelmente só dificultará ainda mais a entrada dos recém formados no mercado de trabalho. Restará a estes nutricionistas a opção de trabalharem por conta própria, maioritariamente numa precaridade que já é criticada e que só tenderá a aumentar.

Por fim, mais importante que procurar uma solução atabalhoada para as dificuldades atuais, é necessário clarificar o que se pretende com um estágio desta natureza, no contexto de uma profissão como a de nutricionista. Queremos assumir que concluir uma licenciatura é suficiente para o início do exercício da profissão? Entendem os nutricionistas que na sua profissão não é necessária uma transição entre a formação académica e o início da prática profissional? Basta olhar para as soluções adotadas por outras Ordens Profissionais, que também foram alvo das alterações legislativas, para entender que é possível fazer esta transição do percurso formativo para o percurso laboral, sem que isso seja uma barreira ao exercício da profissão. Esta é uma reflexão que, infelizmente, não tem estado presente na discussão sobre o tema dos estágios…

A oferta crescente de cursos que permitem o acesso à profissão de nutricionista e a incapacidade do setor público e privado contratarem estes profissionais, a que se somam os desafios iminentes da Inteligência Artificial, são fatores que exigem uma reflexão profunda e alargada. É uma lástima enorme não ver esta discussão fomentada, de forma aberta e participada, com a presença de nutricionistas, dos estudantes, de profissionais dos diversos setores onde atuam os nutricionistas, assim como das entidades governamentais.

Acreditar que terminar com os estágios à Ordem é uma solução para os requisitos legislativos e para os problemas dos futuros nutricionistas, é não ter noção que esses problemas apenas passarão (e se agravarão) para o término da licenciatura. Porque, como bem diz o ditado: “coisa adiada, não está terminada”.