Colonização microbiana: feto estéril ou colonização in utero? 3212

Os estudos sobre o microbiota e o seu impacto na saúde humana aumentaram de forma exponencial na última década. Contudo, ainda são muitas as incertezas sobre quando e como ocorre a colonização destes microrganismos. Se até há bem pouco tempo se considerava a gestação um processo estéril, novas evidências desafiam esta teoria.

Tradicionalmente, é aceite que a transmissão vertical (materna) e horizontal (de outras pessoas e do ambiente) de microrganismos acontece apenas no momento do parto via canal vaginal e/ou pelo contacto com a pele da mãe. A maior parte dos estudos que mencionaram o útero um ambiente completamente isento de bactérias, usaram métodos de cultura celular e/ou microscopia  –  métodos que apesar de serem válidos atualmente, apresentam diversas limitações. Estes estudos, muitos deles do início do século XX, mostraram resultados negativos para a deteção de bactérias aeróbias e anaeróbias em gestações saudáveis. De facto, a presença de bactérias no líquido amniótico e placenta limitava-se a casos de complicações durante a gravidez, como trabalho de parto prematuro, rutura prematura das membranas e sépsis neonatal.

Estudos publicados recentemente que usam técnicas de biologia molecular mais precisas, como qPCR (polymerase chain reaticon) e sequenciação (o gold standard na análise do microbiota) encontraram ADN bacteriano não só no mecónio (a primeira matéria fecal do recém nascido), como no líquido amniótico e placenta. De acordo com Maria Carmen Collado (2016, Scientific Reports), o líquido amniótico contém uma população microbiona que, apesar de ser pouco abundante, é muito diversa e se assemelha ao microbiota detetado na placenta. Um outro estudo encontrou associações entre o microbiota da placenta e o microbiota oral da mãe, propondo uma translocação bacteriana via corrente sanguínea desde a cavidade oral até à placenta, e consequente colonização do feto.

Apesar da crescente evidência a favor da hipótese da colonização in útero, ainda não há consenso entre os pares e são vários os aspectos que têm que ser tidos em consideração. Uma recente e exaustiva revisão publicada na revista “Microbiome” apontou diversas limitações metodológicas aos estudos que alegam que a colonização microbiana ocorre no período pré-natal, nomeadamente: (i) técnicas moleculares com um limite de detecção insuficiente para analisarem pequenas populações microbianas; (ii) falta de controlos negativos apropriados; e (iii) falta de esterilidade na colheita de amostras em ambientes clínicos/ hospitalares. Outro aspeto a ter em consideração referido pela “Nature” é a contaminação das amostras pelos kits de extração de ADN devido ao “kitome” presente nos consumíveis, reagentes e outros componentes dos kits.

Considerando aspetos relacionados com a anatomia e fisiologia da placenta (o órgão de comunicação entre a mãe e o filho) a hipótese da colonização in utero fica ainda mais débil. A placenta, para além de fornecer oxigénio e nutrientes, providencia componentes imunológicos que protegem o feto de infeções bacterianas. Assim, em vez de bactérias vivas, acredita-se que o ADN bacteriano encontrado na placenta seja na verdade de resíduos bacterianos resultantes da acção dos péptidos antimicrobianos e de imunoglobulinas expressos na placenta.

A análise realizada leva a crer que a hipótese da colonização in utero é extremamente fraca. Sabendo-se da importância que o microbiota desempenha no desenvolvimento biológico e do sistema imunitário, é essencial conhecer o momento e os exatos mecanismos associados à transmissão bacteriana de forma a serem optimizadas práticas clínicas que assegurem o melhor cuidado ao bebé. É necessário replicar os estudos e assegurar todos os cuidados inerentes ao processo de colheita e manuseamento de amostra, extração de ADN, garantindo a análise científica e crítica dos resultados.

Juliana Morais,

Estudante de Mestrado da NOVA Medical School Investigadora júnior do Pronutri, CINTESIS