A prática do nutricionista baseada na evidência: desafio em 3 dimensões 1100

A profissão de nutricionista, profissão de saúde, de acordo com o seu código deontológico tem de “Utilizar os instrumentos científicos e técnicos adequados ao rigor exigido na prática da profissão, desenvolvendo uma prática informada e conduzida pela evidência científica” (Regulamento n.º 587/2016 publicado em Diário da República 2.ª série – N.º 112 – 14 de junho de 2016).

Este é um desafio com 3 dimensões:

1. Desafio na escolha das fontes de informação que utilizamos para sustentar as práticas. Pois a publicação de notícias sobre alimentação e/ou nutrição são inúmeras. Umas, de facto, contendo informação credível, científica, muitas outras com conteúdos não fundamentados que geram confusão, são muitas vezes fraudulentos, enganadores, até mesmo perigosos em termos de saúde pública.

2. Desafio na geração da evidência científica. A evidência científica, gerada quer com base na investigação básica, clínica, de translação, na forma de estudo clínico ou de revisão sistemática ou de meta-análise, deve ser uma prioridade na prática do nutricionista. O desenho dos estudos é um enorme desafio: escolha da população, da intervenção/exposição, do grupo controlo/placebo, dos outcomes clínicos.

3. Desafio da evidência económica (custo-benefício): a prática profissional com identificação clara de outcomes económicos é crucial não só pelo impacto da saúde na economia como também pelo papel da economia na saúde.

Sobre a segunda dimensão, a responsabilidade de na prática profissional o nutricionista contribuir para a construção da evidência reveste-se de desafios muito particulares. Por exemplo, a evidência de que a dieta previne ou mesmo cura as doenças crónicas não transmissíveis é já reconhecida desde os anos 60-80 do século passado. No entanto, pelo facto de assistirmos a um reforço em medicina da prática baseada na evidência, classicamente associada aos ensaios clínicos com fármacos, mais fácil entendemos a razão pela qual na prática existe maior dificuldade de considerar factos nutrição/alimentação em medicina. Pela importância que assumiu em medicina os ensaios clínicos duplamente cegos, aleatorizados, controlados (DRCT – double-blind, randomized controlled clinical trial), compreende-se que seja mais difícil reforçar a importância dos dados em nutrição. Por isto o desafio do desenho de estudos clínicos em nutrição/alimentação. Muitas vezes não será fácil, por exemplo, identificar o grupo controlo ou placebo.

Para simplificar, e num exercício meramente exemplificativo, pense-se como desenharíamos um estudo de intervenção para avaliar o efeito da ingestão de maçã na prevenção de cancro da mama. Primeiro de tudo, poderíamos fazer estudo duplamente cego? O investigador e o voluntário faria a ingestão de maçã sem reconhecer que era uma maçã?! Por outro lado, e dado que o exemplo foi uma patologia como o cancro da mama, o tempo necessário de intervenção seria mais difícil de calcular e de ser realizável. Por outro lado, a intervenção nutricional/alimentar em grupos de risco, cujo princípio da ‘hipótese nula’ não se verifica, ou seja, se há a hipótese de que a intervenção é vantajosa (‘a maçã’), não devemos excluir voluntários envolvidos no estudo do acesso à intervenção (grupo controlo). Claro que para isso existem estudos epidemiológicos de observação e associação de comportamentos. Mas se consideramos o desafio da criação de novos produtos (alimentos, ingredientes, práticas, etc) teremos de fazer intervenção.

Ainda que a investigação em nutrição esteja revestida de dificuldades, encarem-se como desafios e nós, os nutricionistas, os intervenientes ativos mais capazes de o fazer, nunca esquecendo as melhores práticas. Historicamente as dificuldades existem em tudo o que seja identificação de comportamentos de risco e doença quando se pretende provar causa-efeito, como foi, por exemplo, a relação do tabaco com o cancro do pulmão, pois não seria possível, nem desejável, fazer um estudo de intervenção com tabaco para avaliar a relação com o aparecimento do cancro do pulmão.

Conceição Calhau,
Professora Nutrição e Metabolismo, NOVA Medical School, UNL
Investigadora ProNutri, CINTESIS