Num tempo em que assistimos a um crescendo de marketing sobre as dietas alcalinas, águas alcalinas e até máquinas para alcalinizar as águas, devemos parar e refletir sobre a evidência científica que sustenta tal campanha, maioritariamente associada a mensagens de evitar, ou mesmo, tratar doenças crónicas, tais como o cancro. Detalhando o assunto e tentando explicar as várias “hipóteses/teorias”, temos de compreender que para muitos os alimentos são classificados “ácidos” ou “alcalinos” conforme a sua riqueza em proteína e em fósforo (alimentos ácidos) ou em potássio, magnésio e cálcio (alimentos alcalinos), não conforme o pH do alimento. De acordo com esta classificação, as carnes, por exemplo, são alimentos ácidos e os hortícolas são alcalinos. Com base apenas nesta questão, a da riqueza em certos minerais, não é difícil chegar à conclusão de que o consumo de hortícolas deva ser promovido. Mas sabemos que muitas são as razões para o defendermos, não necessariamente apenas assente na questão dos minerais, muito menos numa questão de pH do sangue. Um ensaio clínico, randomizado, bem desenhado e bem conduzido, que pretendeu avaliar o impacto no pH do sangue do consumo de uma “dieta alcalina”, apenas mostrou uma subida do pH do sangue em apenas 0,014 unidades de pH, enquanto que foi observada uma alteração do pH da urina em 1,02 unidades de pH. Conclusão do estudo, esta dieta não tem impacto no pH do sangue. Mais, recomendações de uma alimentação saudável baseadas nesta classificação seriam impróprias por afastarem do consumo alimentos como as lentilhas, a aveia ou mesmo o feijão, que dado o seu teor proteico acabam por ser classificados de “alimentos ácidos”. No entanto, interessa do ponto de vista farmacológico, e num contexto de interações com medicamentos, a questão dos alimentos influenciarem o pH da urina, ou seja, se o consumo de um alimento altera o pH da urina, pode modificar a farmacocinética do medicamento uma vez que pode afetar a sua taxa de excreção urinária. Factos: existem alimentos capazes de, após a sua ingestão e absorção, alterar o pH da urina, não o do sangue; uma acidificação da urina não é tradução de uma acidose metabólica, nem de efeitos adversos para a saúde; as células tumorais devido a uma glicólise aeróbia (efeito de Warburg) produzem ácido láctico, levando a uma acidificação do meio envolvente (não é o pH do sangue que por ficar ácido provoca cancro). Em conclusão, não existe evidência científica que sustente uma associação entre o consumo de água alcalina e os benefícios para a saúde. Pelo contrário, meta-análises mostram ausência de associação. Qualquer publicidade, alegação de que o consumo desta previne ou trata o cancro, deverá ser considerada enganosa, porque não é sustentada em evidência científica. Pior ainda, se esta ilusão pode até afastar o doente oncológico das terapêuticas mais indicadas. Igualmente sem qualquer fundamentação científica são as afirmações de que o consumo de “alimentos ácidos” provoca cancro, justificando a crença no facto de que “o cancro é ácido”. Reforço a importância de o nutricionista cumprir o seu código deontológico, sobretudo o dever geral (artigo 4º, d) Utilizar os instrumentos científicos e técnicos adequados ao rigor exigido na prática da profissão, desenvolvendo uma prática informada e conduzida pela evidência científica. Conceição Calhau, Professora Nutrição e Metabolismo, NOVA Medical School, UNL |