Por Júlio César Rocha, PhD. Professor Auxiliar, NOVA Medical School, Universidade Nova de Lisboa. Nutricionista, especialista em Nutrição Clínica, 0438N. Presidente da Sociedade Portuguesa de Nutrição Clínica e Metabolismo.
As doenças crónicas não comunicáveis constituem uma preocupação crescente, justificável pela morbi-mortalidade a estas associada. A prevalência de diabetes tipo 2, em associação com o excesso de peso, tem vindo a aumentar de forma muito preocupante. A metformina constitui o fármaco de primeira linha para o tratamento de doentes com diabetes tipo 2, permitindo a redução da glicemia, bem como perda de peso. Todavia, até muito recentemente, era desconhecido o mecanismo que justificava estes efeitos terapêuticos. Neste ano de 2024, dois trabalhos publicados na Nature Metabolism ajudam a desvendar este tema.
O N-lactoil-fenilalanina (Lac-Phe) é um metabolito que resulta da fusão de lactato e fenilalanina através da ação da dipeptidase 2 da carnosina (CNDP2), expressa maioritariamente nas células mieloides e nas células do epitélio intestinal e renal. Xiao e colaboradores1, mostraram experimentalmente que a metformina inibe o complexo 1 da fosforilação oxidativa, o que leva a uma maior formação de lactato, nas células do epitélio intestinal e, consequentemente, um indutor da formação de Lac-Phe, com um papel anorexigénico. Mais ainda, em ratinhos sem capacidade de produção de Lac-Phe, verifica-se uma resistência à ação da metformina.
Em doentes com obesidade e diabetes tipo 2, o Lac-Phe mostrou-se aumentado em quase 6 vezes, comparativamente a doentes obesos sem diabetes tipo 2. Tendo em conta a frequência da prescrição de metformina a doentes com diabetes tipo 2, levanta-se a hipótese da elevação dos níveis de Lac-Phe estarem relacionados com a diabetes tipo 2, ou se será consequência da toma da metformina. Scott e colaboradores2 mostraram uma forte correlação entre as concentrações de Lac-Phe e as concentrações de metformina, em doentes com diabetes tipo 2.
Os doentes recentemente diagnosticados com diabetes tipo 2, que iniciaram terapêutica com metformina, demonstraram uma elevação marcada das concentrações de Lac-Phe. Em contraste, nos novos doentes com diabetes tipo 2, que não iniciaram terapêutica com metformina, as concentrações de Lac-Phe mostraram-se inalteradas. Em paralelo, este trabalho tem ainda a capacidade de mostrar que o Lac-Phe sobe também em resposta à administração de metformina em indivíduos saudáveis. O período pós-prandial também conduz a um aumento da Lac-Phe, em paralelo com a subida de outros agentes supressores do apetite, tais como a grelina e a leptina, o que pode fazer antecipar o interesse farmacológico da Lac-Phe para o tratamento da obesidade.
De forma muito interessante, o Lac-Phe está igualmente aumentado em indivíduos sujeitos a exercício intenso, em resultado dos níveis elevados de lactato originário do metabolismo muscular. Também no ano de 2024, num trabalho que teve como objetivo a identificação de novos marcadores bioquímicos para a Fenilcetonúria (PKU), van Wegberg e colaboradores3, mostraram que em adultos com a doença se verifica um aumento significativo das concentrações de Lac-Phe. Nos últimos anos tem sido intensa a discussão em torno das comorbilidades mais frequentes nos doentes adultos com PKU.
Há certamente importantes moduladores, como sejam o grau de adesão às intervenções nutricionais e farmacológicas, o estilo de vida e o controlo metabólico que os doentes apresentam. Contudo, estes novos trabalhos, lançam ainda maior interesse para esta discussão, na medida em que sabemos os efeitos da administração crónica de Lac-Phe na redução da adiposidade e na melhoria da homeostasia da glicose. Por outro lado, para além dos efeitos induzidos pela metformina, o exercício físico é igualmente um potente indutor da síntese de Lac-Phe, o qual se associa com a perda de peso e de tecido adiposo em programas de intervenção.
Considero assim justo que em agosto de 2024, a revista Trends in Endocrinology & Metabolism4, tenha selecionado o Lac-Phe como metabolito do mês. Não como conclusão, mas como perspetiva futura, deixa-se no ar a questão sobre se já não estarão os doentes com PKU a beneficiar um efeito “metformin-like”, o qual, a ser verdade, poderá estar a mascarar as estatísticas de comorbilidades metabólicas nos doentes PKU que vamos observando nos dias de hoje.
1 https://www.nature.com/articles/s42255-024-00999-9
2 https://www.nature.com/articles/s42255-024-01018-7
3 https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/jimd.12732
4 https://www.cell.com/trends/endocrinology-metabolism/fulltext/S1043-2760(24)00125-5