Alimentação vegetariana? “Bem planificada é nutricionalmente apropriada em todas as fases da vida” 1133

Uma vez que a adoção de regimes alimentares vegetarianos parece ser uma tendência, é muito importante que «os profissionais de saúde, nomeadamente os nutricionistas, estejam atualizados» sobre estes padrões, que podem ser adotados em todas as fases da vida, desde que bem planificados.

Atualmente, em Portugal, mais de um milhão de pessoas optam por uma alimentação vegetariana ou tendencialmente vegetariana, existindo 43 mil veganos, 180 mil vegetarianos e 796 mil flexitarianos, segundo um estudo da consultora Lantern, de 2021. O grupo que registou um maior aumento, face ao estudo anterior (de 2019), foi o dos vegetarianos, com um incremento de 137%. Também o número de flexitarianos aumentou, tendo crescido 27% em dois anos.

Os ovolactovegetarianos, que em 2019 eram apenas 0,9%, chegaram aos 2,1% em 2021. Em contrapartida, o número de veganos diminuiu, pois, sendo cerca de 0,5% em 2021, em 2019, eram 0,7%.

A transição para um regime alimentar vegetariano parece ser uma tendência em forte crescimento, com muitos dos inquiridos a revelaram ter adotado este género de alimentação recentemente: 25% começaram a sê-lo apenas no ano anterior ao estudo.

 Todos o podem adotar

«A Academy of Nutrition and Dietetics (AND), afirma, desde 2009, que uma alimentação vegetariana bem planificada é nutricionalmente apropriada em todas as fases da vida, e também para atletas, apresentando vários benefícios na prevenção e tratamento de doenças crónicas, sendo efetiva na perda de massa corporal (obesidade), na diminuição da incidência de hipertensão arterial, doenças cardiovasculares, hiperlipidemias, síndrome metabólica e aterosclerose, doença oncológica e diabetes», explica a nutricionista Rafaela Honório, mentora do projeto GreenDate. Deste modo, à partida, «quem mais beneficiaria com este padrão alimentar seriam os portadores das referidas patologias ou quem necessite de as prevenir», acrescenta.

Não obstante,  desde que não haja condições de base que impossibilitem um bom estado nutricional, «como a existência de preferências individuais, alergias ou intolerâncias alimentares que diminuam de forma significativa a oferta alimentar, incompatibilizando com uma nutrição adequada, efetivamente todos podem optar por uma alimentação vegetariana», reitera Márcia Gonçalves, nutricionista no Núcleo de Saúde e Bem-estar dos Serviços de Ação Social da Universidade do Porto e autora do blogue Compassionate Cuisine. No entanto, a nutricionista alerta ser necessária «cautela a orientar para uma alimentação vegetariana em contextos em que se suspeite que o vegetarianismo possa ser uma estratégia (restringindo mais a oferta alimentar) para encobrir uma perturbação do comportamento alimentar (embora na prática seja algo muito pouco comum) e, nesse caso, é essencial avaliar as motivações e apoiar no tratamento desta condição».

Respeitar o utente e análises sanguíneas

«É muito importante que os profissionais de saúde, nomeadamente os nutricionistas, estejam atualizados sobre o padrão alimentar vegetariano, para que saibam dar as devidas orientações nutricionais», salvaguarda a nutricionista Sandra Gomes Silva, autora do livro O Vegetariano.

De uma forma geral, um padrão alimentar vegetariano (incluindo o vegano) «saudável e bem planeado é aquele que: (1) privilegia uma variedade de alimentos de origem vegetal, enfatizando o consumo de alimentos minimamente processados, e atenda às necessidades de nutrientes como a proteína, cálcio, iodo, ferro e zinco; (2) na seleção das fontes de gordura, favorece alimentos fornecedores de ácidos gordos ómega-3 e monoinsaturados; e (3) assegure um consumo em quantidade adequada (a partir de alimentos fortificados ou de suplementos) de vitamina B12 e D», sintetiza Márcia Gonçalves.

Deve-se ainda, sobretudo na hora de “desenhar” o plano alimentar, privilegiar «alimentos integrais de origem vegetal variados, mantendo o mais possível aquela que é a ingestão alimentar habitual do utente, ajustando, por isso, o que for necessário para garantir a adequação nutricional», recomenda Sandra Gomes Silva.

Por seu turno, Magda Roma aconselha a «realização de análises sanguíneas para avaliar os parâmetros nutricionais do paciente (e realizar o controlo analítico ao fim de três meses para apurar se o aconselhamento surtiu o efeito pretendido)». Neste sentido, a nutricionista, autora de vários livros, nomeadamente d’O Livro das Receitas Vegan, explica que, «não porque seja normal encontrarem-se em desequilíbrio, mas para perceber que alimentos ou grupos de alimentos se devem contemplar face às necessidades ou até mesmo suplementar caso haja um deficit severo». Depois, há que ter o cuidado de «explicar quais os grupos alimentares e quantidades a consumir diariamente», acrescenta a nutricionista.

Daí que, como conclui Márcia Gonçalves, a consulta de nutrição «numa fase de transição será vantajosa para a aquisição de conhecimentos e competências práticas na escolha dos alimentos essenciais para garantir uma alimentação saudável vegetariana a longo prazo».

Cuidados diferenciados

A necessidade de cuidados nutricionais diferenciados na alimentação vegetariana decorre à partida, de acordo com Márcia Gonçalves, «das necessidades individuais (às vezes aumentadas) em função das fases do ciclo de vida (infância, gravidez) ou associadas à demanda do exercício físico intenso».

Mas, de uma maneira geral, «na alimentação vegana deverá ter-se em atenção o aporte suficiente e a biodisponibilidade (a capacidade de absorção) de alguns nutrientes, como a proteína, ácidos gordos ómega-3, vitamina B12, cálcio, ferro, zinco, iodo e vitamina D, bem como o valor energético (como calorias)», especifica Rafaela Honório, acrescentando que, quanto aos restantes “subtipos” do vegetarianismo, «devem ser avaliados caso a caso de acordo com a alimentação habitual da pessoa».

Na prática, isto implica, como argumenta Márcia Gonçalves, «assegurar o consumo adequado de fontes alimentares de proteína, ferro e zinco, orientando muitas vezes para a inclusão das leguminosas nas refeições principais». Já quando há um baixo consumo de lácteos, por motivos de restrição ou evicção por alergia ou intolerância, «é fundamental garantir a correta reposição do cálcio, na forma de bebidas vegetais fortificadas e alternativas ao iogurte, hortaliças, tofu e algumas sementes e leguminosas». A nutricionista recomenda ainda «o uso do sal iodado e, independentemente do padrão alimentar vegetariano, é essencial averiguar a necessidade de realizar suplementação de vitamina B12 (mesmo no caso dos ovolactovegetarianos, a ingestão pode revelar-se insuficiente, face às recomendações europeias – da EFSA, de 4 mcg/dia – e, a médio-prazo, desenvolver-se um défice nutricional)».

O caso das grávidas

As dietas vegetarianas (incluindo as veganas) bem planeadas podem fornecer «uma nutrição adequada na gravidez, lactação, e infância», indica Márcia Gonçalves, salvaguardando que, contudo, «a adoção destas dietas nutricionalmente completas exige compromisso, planeamento, suplementação, e supervisão médica e nutricional, visto ser essencial salvaguardar, através de escolhas alimentares apropriadas, uma adequada ingestão energética e o suprimento de nutrientes-chave». Assim sendo, «é importante garantir o consumo suficiente de alimentos variados, de modo a suprimir as necessidades em macro e micronutrientes para evitar possível deficiências nutricionais», complementa Rafaela Honório.

Desde logo, há, por exemplo, «o aumento das necessidades de proteína, mas que são possíveis de satisfazer (incremento de nove e 28 g de proteína por dia no segundo e terceiro trimestres, respetivamente) através do consumo de alimentos como leguminosas, derivados da soja (bebida de soja, tofu), cereais e oleaginosas», especifica Márcia Gonçalves. A composição das gorduras deve também ser considerada, «especialmente os ácidos gordos polinsaturados ómega-3, fundamentais para o desenvolvimento do sistema nervoso do feto. Na alimentação vegetariana, o ácido alfa-linolénico (ALA) é obtido através do consumo de sementes de linhaça e chia e nozes». Todavia, «para garantir as necessidades aumentadas de ómega-3, as grávidas vegetarianas também poderão optar por suplementos de microalgas para satisfazer as recomendações de DHA». E ainda, «para suprir as necessidades do feto e o aumento do volume de sangue, é essencial uma ingestão adequada de ferro. Algumas fontes alimentares nas dietas vegetarianas incluem cereais integrais, leguminosas, oleaginosas, sementes, e alimentos fortificados (cereais de pequeno-almoço). Mas, o aproveitamento do ferro fornecido pela dieta depende de alguns fatores, como a forma (heme ou não-heme), e a composição da refeição. As dietas vegetarianas fornecem exclusivamente ferro não-heme (ferro férrico), cuja absorção pode ser potenciada pela presença de vitamina C na refeição», explica Márcia Gonçalves.
Nas grávidas e lactantes, o consumo de vitamina B12 requer mais atenção, dado que «a carência na dieta da mãe traduz-se em reservas menores no filho, assim como num menor teor no leite materno (quando as mães vegetarianas suplementam adequadamente esta vitamina, não parece haver diferenças no seu teor no leite materno). A ingestão diária recomendada de vitamina B12 é de 4,5 µg, podendo ser suprida com recurso a alimentos (fortificados e também pelos ovos e lacticínios, no caso das ovolactovegetarianas), e/ou suplementos», especifica a nutricionista.

 

Quanto a grávidas veganas, especificamente, Magda Roma refere que «os cuidados a salvaguardar são os mesmos para uma grávida omnívora: ter atenção aos alimentos crus, desinfetá-los de forma conveniente e/ou cozinhá-los». E, como é óbvio, «providenciar um bom e adequado aporte de vitaminas e minerais segundo cada fase do desenvolvimento do feto, assegurar a proteína necessária para o seu equilíbrio e desenvolvimento do feto», acrescenta.

O caso das crianças

A alimentação vegetariana é «nutricionalmente apropriada em idade pediátrica, desde que bem planeada», indica Rafaela Honório, especificando que os cuidados «são os mesmos associados a este padrão alimentar e prendem-se com o comprometimento no aporte de alguns nutrientes como ferro, zinco, vitamina B12, cálcio, e ácidos gordos ómega-3, na ausência de um planeamento cuidado».

Assim sendo, de acord o com a nutricionista, «recomenda-se a inclusão de alimentos como as leguminosas, nomeadamente a soja e seus derivados, pelo seu conteúdo em proteína, ferro e zinco, assim como o consumo diário de frutos gordos e sementes para assegurar um aporte adequado de ácidos gordos essenciais». Além disso, os produtos hortícolas «(as hortaliças são fontes de cálcio, por exemplo) devem estar presentes diariamente,

nas refeições principais, e deve ser assegurada a variedade; assim como se deve incluir, igualmente, fruta, sobretudo da época, de preferência em cru e hortofrutícolas ricos em vitamina C para potenciar a absorção de ferro e zinco». Rafaela Honório aconselha ainda «a não esquecer os cereais e tubérculos, fontes importantes de hidratos de carbono e proteína e também de vitaminas, minerais e fibra».

A alimentação, como salvaguarda a nutricionista, deve ainda «ser ajustada aos sinais de fome e saciedade, não devendo ser dada para confortar ou servir de recompensa».

De acordo com a experiência de Magda Roma, «são cada vez mais as crianças e adolescentes a decidirem ter uma alimentação de base vegetal, mesmo quando os seus pais não têm». Para a nutricionista, «o reino vegetal providencia todos os nutrientes necessários ao correto desenvolvimento e não encontro nada nos produtos de origem animal que seja exclusivo exceto a vitamina B12». Porém, isto não representa um problema, dado que «tal como há produtos alimentares enriquecidos com cálcio (o leite naturalmente tem cálcio, mas também há leite enriquecido com este mineral), porque não tomar uma bebida vegetal enriquecida com vitamina B12?». No fundo, o importante, como reforça, «é providenciar uma alimentação variada e equilibrada para cada fase de desenvolvimento da criança e isso faz-se junto de um nutricionista conhecedor desta área».

Desmistificar o padrão alimentar vegetariano

Existem vários mitos relacionados com a alimentação vegetariana e os seus vários subtipos. As nutricionistas Magda Roma e Rafaela Honório desmistificam alguns deles.

  1. «Pessoas com determinados tipos de sangue não podem ser veganos. Porém, segundo a teoria da dieta do tipo de sangue, indivíduos com o tipo O têm de comer carne. No entanto, acompanho várias pessoas, entre elas dois atletas de alta competição, veganas com tipo O e saúde e força não lhes falta», refere Magda Roma.
  2. «É um mito afirmar que a proteína de origem vegetal é de qualidade inferior à proteína animal e, desse modo, compromete a recuperação após exercício», indica Rafaela Honório.
  3. «Os veganos nunca poderão ser atletas de competição. Não é verdade, dado que há atletas nos mais variados desportos que são veganos e estão onde estão pela sua dedicação e respeito ao seu corpo», salienta Magda Roma.
  4. «A alimentação vegetariana causa anemia», declara Rafaela Honório. Na verdade, «a falta de ferro não é comum, por exemplo, nos vegetarianos estritos caso tenham a alimentação adequada e não tenham patologia associada. Acompanho mais pacientes com anemia que consomem produtos de origem animal que vegetarianos estritos», especifica Magda Roma.
  5. «Precisa-se de comer carne para o músculo crescer. Isto não é verdade, o que faz o músculo entrar em hipertrofia é o exercício físico, essencialmente anaeróbico, aliado a uma hidratação e nutrição rica em proteína, que não tem de ser de origem animal», elucida Magda Roma.
  6. «O cálcio está no leite. Sendo um mineral rico nos produtos de origem vegetal, não é exclusivo do leite de vaca», declara Magda Roma.

É preciso suplementar?

«Os alimentos minimamente processados devem ser a base da alimentação, mas, dependendo das circunstâncias individuais, alguns suplementos poderão constituir um veículo importante de alguns nutrientes cujas necessidades estão aumentadas nestas fases do ciclo de vida», aponta Márcia Gonçalves, salvaguardando que «a necessidade de fazer suplementação de vitamina B12 ou DHA não invalida o padrão alimentar vegetariano e não o torna menos “natural”. Aliás, práticas comuns como a fortificação de géneros alimentícios (por exemplo, com ácido fólico ou ferro), e a suplementação transversal de algumas faixas etárias (por exemplo, vitamina D no primeiro ano de vida; ou a necessidade de suplementação de vitamina B12 nos idosos) têm permitido a melhoria do estado nutricional das populações».

Assim sendo, como indica Magda Roma, «é apenas necessário suplementar caso a pessoa não ingira os alimentos aconselhados e que analiticamente se apresentem deficiências». No entanto, em alguns contextos, como salvaguarda Márcia Gonçalves, «poderá ser sensato uma suplementação profilática, por exemplo, de vitamina B12, quando as fontes alimentares (ovos e lacticínios no caso dos ovolactovegetarianos ou, os alimentos fortificados, no caso dos vegetarianos estritos), se mostram insuficientes».

Também no que toca à vitamina D, «é bastante difícil termos um aporte adequado numa dieta vegetariana, como acontece também com as restantes dietas. Daí que a suplementação desta vitamina pode ser indicada na ausência de exposição solar suficiente», complementa Sandra Gomes Silva.

Padrões alimentares vegetarianos – Em síntese

É importante que «a alimentação não seja monótona e limitada nas suas escolhas. Devendo, por isso, contemplar alimentos fermentados, cereais, leguminosas, frutos secos, sementes, vegetais, legumes, tubérculos e fruta», sublinha Magda Roma.

Assim sendo, em jeito de conclusão, Rafaela Honório indica que um padrão alimentar vegetariano deve:

–  Variar nas frutas e nos hortícolas;

– Privilegiar o consumo de leguminosas, cereais integrais e hortícolas como ingredientes principais nas refeições principais;

– Caso ainda haja consumo alimentos de origem animal como laticínios e ovos, selecionar as versões magras e consumir estes alimentos com moderação;

– Minimizar o consumo de alimentos com elevado teor de açúcar, sal, gorduras, especialmente, gorduras saturadas e trans, como são exemplo refeições pré-preparadas, refeições tipo fast-food e refrigerantes;

– Incluir diariamente, com moderação, fontes alimentares ricas em gorduras saudáveis como frutos gordos, sementes e abacate;

– Utilizar regularmente uma fonte de vitamina B12 e, no caso de exposição solar insuficiente, também de vitamina D;

– Beber muita água e manter-se ativo.

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA VIVER SAUDÁVEL #81.