“Ainda há muito trabalho a fazer” 2795

Diretora do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) da Direção-Geral da Saúde (DGS) desde 2019, Maria João Gregório foi distinguida como “Nutricionista do Ano” na terceira edição dos Prémios VIVER SAUDÁVEL. Confessa “apaixonada” pela área da política nutricional, presta um verdadeiro serviço público na melhoria da saúde dos portugueses. Admite que os últimos cinco anos foram “muito intensos”, mas sente-se com “vontade de continuar”.

VIVER SAUDÁVEL (VS) | Que significado teve para si receber este prémio?

Maria João Gregório (MJG) | Senti-me muito honrada por ter sido premiada e pelo reconhecimento de um trabalho que tenho vindo a desenvolver, essencialmente, na DGS em prol da promoção da saúde dos portugueses. Foi muito bom ver todas as felicitações e mensagens que fui recebendo após a entrega do prémio. O dia a dia é sempre tão intenso que nem temos espaço nem oportunidade para refletir naquele que tem sido o nosso percurso. Este momento também me permitiu fazer essa reflexão. Foram cinco anos, enquanto diretora do PNPAS, muito intensos, que, às vezes, não nos permitem ter uma perceção das pequenas conquistas que vamos conseguindo. Sinto, também, muita responsabilidade associada a este reconhecimento, mas sinto-me feliz, naturalmente, e agradeço muito à Viver Saudável.

VS | Qual é a sua opinião sobre os Prémios VIVER SAUDÁVEL?

MJG | É uma iniciativa muito importante. A revista VIVER SAUDÁVEL é um meio por excelência, que dá voz aos nutricionistas e ao trabalho desenvolvido pelos nutricionistas de variadíssimas formas. Sem dúvida que os prémios reconhecem muito do trabalho de excelência que se faz na área da nutrição em Portugal. Aquilo que temos ouvido nos discursos das equipas vencedoras é que este reconhecimento tem sido muito importante também para dar visibilidade aos projetos, para que eles possam ter notoriedade e crescer, porque esta é uma área que, apesar de ter uma grande valorização por parte da sociedade, tem alguns desafios do ponto de vista daquilo que é a sua afirmação.

VS | Este reconhecimento deve-se, sobretudo, ao seu trabalho dedicado à causa pública, nomeadamente no âmbito do PNPAS. Como começou esta história? De onde vem a paixão por esta área?

MJG | A paixão pela área das políticas nutricionais surge na última fase do meu percurso académico. Fiz o meu estágio académico no Brasil – no Ministério da Saúde –, um país que tem esta área das políticas nutricionais muito desenvolvida. Quando era estudante e tínhamos esta unidade curricular com o Prof. Pedro Graça, ainda não tínhamos uma política nutricional no nosso país, ainda não existia um programa específico dedicado a esta área. A experiência que tive no Brasil fez-me perceber o quanto esta área poderia verdadeiramente fazer a diferença e o quanto as políticas públicas eram necessárias para conseguirmos melhorar os hábitos alimentares de uma população. Acabei por fazer o meu trabalho de conclusão de licenciatura nesta área, em que fiz uma análise comparativa entre aquilo que eram as medidas que existiam nesta área no Brasil e em Portugal. E quem fez a discussão das minhas provas finais foi o Prof. Pedro Graça. Por isso, o meu envolvimento na DGS começa pouco tempo depois, talvez um ano depois, no momento em que ele assumiu funções na DGS e eu já estava a colaborar com ele, já que, entretanto, tinha iniciado um programa doutoral com o objetivo de continuar a trabalhar nesta área. Acabei por integrar a equipa que depois deu origem ao PNPAS. Fui colaborando, no fundo, desde a criação do programa, em 2012, se bem que de uma forma informal, numa fase inicial. Mais tarde, assumi um papel diferente, fiquei como adjunta e, depois, quando o Prof. Pedro Graça saiu, fui convidada pela direção da DGS a assumir a direção. Desde muito cedo que estive envolvida naquilo que foi a construção do primeiro programa nacional para a área da alimentação. Já passaram alguns anos e continuo apaixonada por esta área e continuo a gostar muito daquilo que faço. O meu papel e as minhas funções na DGS foram sempre pro-bono, é uma acumulação de funções que tenho relativamente àquilo que é a minha atividade enquanto docente na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP). Não tenho nenhuma remuneração associada às funções que aqui exerço, nem nunca tive. São funções que desempenho enquanto serviço público e com muito gosto.

“Dos diretores dos programas de saúde prioritários, sou, provavelmente, a pessoa mais jovem”

VS | Recebeu o galardão justamente das mãos do Prof. Pedro Graça, vencedor do prémio “Nutricionista do Ano” em 2022, que passou o testemunho. Que influência teve ele no seu percurso profissional?

MJG | Muita! Enquanto docente, foi sempre uma referência para mim. Ele era uma das pessoas mais inspiradoras e com aulas que nos deixavam sempre a refletir sobre os problemas de uma forma diferente. Numa fase inicial, eu tinha mais interesse pela área clínica. Quando iniciei o meu estágio, não sabia que iria gostar tanto da área da saúde pública, por isso não o escolhi como orientador. Depois de ter percebido que a área da saúde pública era a área que mais me interessava e onde queria desenvolver o meu percurso profissional, escolhi-o para me acompanhar enquanto orientador de doutoramento. A nossa relação profissional começa dessa forma. Mais tarde, acabei por ficar como assistente das unidades curriculares que ele lecionava, em particular a de Política Nutricional, até porque com a vinda dele para a DGS foi necessário assumir parte das suas aulas. É uma pessoa que tem uma visão estratégica, tem um conhecimento da área da nutrição e não só, o que faz dele uma pessoa que consegue ter uma capacidade de liderança incrível. Aquilo que é o PNPAS hoje é muito resultado daquilo que foi o trabalho que ele desenvolveu durante os primeiros dez anos. Por isso é que no meu discurso na gala disse que achava que tinha tido muita sorte, porque quando chego à direção do PNPAS tínhamos um programa que era reconhecido interna e externamente, e quando falo externamente, falo também a nível internacional. É muito fácil dar continuidade a um projeto que cresceu bem e que tinha essa notoriedade e sem dúvida que devemos isso ao Prof. Pedro Graça. Ele foi capaz de criar um programa específico para a área da alimentação e de implementar uma série de medidas marcantes para a área da promoção da alimentação saudável. Ele continua a ser a minha referência e continua a ser consultor da DGS para o programa. Também é com ele com quem, muitas vezes, discuto questões mais sensíveis e que exigem alguma reflexão. Ele é, de facto, uma referência para mim na área da nutrição, e um amigo, sem dúvida.

VS | Visto que já era adjunta do Prof. Pedro Graça, tinha a expetativa de assumir a direção do PNPAS ou foi com surpresa que recebeu o convite?

MJG | Francamente, não tinha expetativa nenhuma. Foi com surpresa que recebi o convite da Dra. Graça Freitas, que era diretora-geral da Saúde na altura. O Prof. Pedro Graça resolveu deixar a direção do programa porque, entretanto, assumiu funções na direção da FCNAUP e aguardávamos que fosse identificado um novo diretor e, com isso, uma nova equipa de adjuntos, porque são uma nomeação do diretor. Não fazia ideia que iria ser convidada para assumir esta função, até porque, como disse também no meu discurso, eu era muito jovem, tinha 32 anos. Mesmo agora, dos diretores dos programas de saúde prioritários, sou, provavelmente, a pessoa mais jovem. Não quer dizer que tenha de ser um critério para a seleção de quem assume um cargo deste género, mas a nossa sociedade ainda reconhece a idade como um critério de qualidade, de competência.

VS | Mas sentia-se preparada para o desafio?

MJG | Ponderei muito se devia aceitar ou não, mas, às vezes, há oportunidades que só aparecem uma vez. Sentia que já tinha experiência, porque tinha acompanhado o programa desde o seu início. Mas é claro que assumir a direção é completamente diferente. Uma coisa é estar na retaguarda e alguém assume tudo o que é necessário assumir. Tinha muitos receios, como é natural, não sabia se iria estar à altura do desafio, se iria ser capaz. Mas a Dra. Graça Freitas tinha confiança em mim e no meu trabalho, portanto achei que podia aceitar e podia tentar. Pelo menos foi assim que assumi numa fase inicial. Mas sim, foi com surpresa, não imaginava que poderia ser uma escolha.

VS | “Tinha duas caraterísticas que, em conjunto, são vistas como uma fragilidade para um cargo de direção: ser mulher e ser jovem”, mencionou no seu discurso de vitória. Acaba de reforçar essa ideia. Sente que por ser mulher, por ser mais jovem, teve de provar com mais veemência o porquê de ter assumido a pasta?

Alvo de alguma desconfiança inicial, por «ser mulher e ser jovem», a diretora do PNPAS conquistou a pulso o seu lugar, com «capacidade» e «competência».

MJG | Sim, senti em vários momentos que essa era uma fragilidade que eu tinha, ser mulher e ser jovem. Hoje em dia, sinto que já estou preparada e já consigo lidar bem com essa fragilidade, mas, no início, nem sempre foi fácil, porque estamos numa fase inicial e, de alguma forma, temos os holofotes colocados em nós. Há uma expetativa de perceber qual é que vai ser o desempenho, porque é um cargo que tem essa exposição e é muito sujeito a críticas, como qualquer cargo que tenha este nível de exposição. Fui ultrapassando esses momentos e a forma de os ultrapassar é mostrar a nossa capacidade e a nossa competência. Enquanto equipa, foi isso que fomos fazendo, porque a equipa, toda ela, é constituída por pessoas jovens, não sou a única nesta circunstância.

VS | Ao nível do PNPAS, que desafios encontrou quando assumiu este novo cargo? Encontrou desafios que não esperava?

MJG | Houve muitos desafios que sabia que iriam fazer parte e que estão muito associados àquilo que são as medidas que promovemos nesta área. São medidas que, na maior parte das vezes, não têm uma boa aceitação por parte de muitos stakeholders, em particular os do setor agroalimentar, o que faz com que todas as nossas propostas tenham de ter uma fundamentação bem detalhada e já tentando antecipar uma série de questões que, à partida, sabemos que vão surgir na sua discussão. Durante o primeiro ano, houve uma medida que foi aprovada na Assembleia da República (AR), a lei que regula a publicidade alimentar dirigida a crianças, na qual foi-nos atribuída uma tarefa muito complexa após a sua aprovação. Essa foi, provavelmente, uma das medidas mais difíceis de implementar e onde tivemos uma resistência muito grande por parte dos operadores económicos do setor alimentar. Foi uma das medidas mais importantes destes últimos cinco anos e uma necessidade à qual tive de dar resposta logo no primeiro ano.

VS | Teve logo uma “prova de fogo”.

MJG | Sim! Tivemos de produzir cientificamente e publicar o modelo de perfil nutricional que depois iria identificar os alimentos que não poderiam ser publicitados para crianças. Foi um trabalho percursor a nível europeu e em colaboração com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Claro que essa decisão e esse modelo de perfil nutricional condicionava muita coisa, desde logo condicionava os produtos que verdadeiramente ficariam de fora. Esse foi um dos grandes desafios que destaco. Aqueles que não estava à espera numa fase inicial têm a ver com uma série de questões que fazem parte daquilo que foi a nossa vida nos últimos anos. Nestes primeiros cinco anos, dois deles foram vividos com uma pandemia, em que grande parte daquilo que eram as nossas medidas foram condicionadas, em que houve, claramente, uma não priorização desta área, como seria de esperar. Para além disso, temos tido uma situação política muito instável, com duas dissoluções da AR, com vários processos legislativos e, com isso, já foram muitos meses em que trabalhámos com Governos de gestão. A verdade é que as nossas medidas, em particular as do PNPAS, dependem precisamente do poder político. Naturalmente que isso condiciona os nossos resultados e condiciona as nossas expetativas.

VS | Já apontou a regulação do marketing e da publicidade alimentar dirigida a crianças. Pedimos para destacar mais duas medidas fundamentais desde que assumiu a direção do PNPAS.

MJG | Destaco o acordo que fizemos para a reformulação dos produtos alimentares, pela sua abrangência – capaz de abranger mais de 2 mil produtos – e pela capacidade que tem de modificar aquilo que está disponível para consumo de toda a população portuguesa. Foi uma das principais medidas que concretizámos também em 2019, no primeiro ano. A terceira, destaco uma mais recente. Não é uma medida, mas é um instrumento fundamental para a tomada de decisão nesta área e para a avaliação daquilo que têm sido os resultados das nossas medidas, que tem a ver com a realização do novo Inquérito Nacional Alimentar e de Atividade Física (INAAF). Esta tem sido uma das nossas grandes fragilidades. Não temos conseguido recolher e fazer estes inquéritos com a regularidade necessária. Deveríamos ter a capacidade de o replicar a cada cinco anos. O primeiro fizemos em 1980, o segundo em 2015/2016 e abrimos, há cerca de duas semanas, com financiamento da DGS, o concurso público para a realização do terceiro. Já conseguimos encurtar bem o intervalo de tempo, não conseguimos ainda chegar ao intervalo de cinco anos. Mas a realização quer do inquérito de 2015/2016, uma conquista do Prof. Pedro Graça, quer agora do terceiro, que provavelmente irá iniciar-se no início de 2024, destaco como uma das principais iniciativas do PNPAS, porque é uma ferramenta muito importante para tomarmos decisões baseadas em evidência, baseadas nos reais problemas e necessidades da população nesta área. Neste momento, já é muito difícil para nós desenhar medidas com a informação recolhida em 2015/2016, depois da pandemia, depois de um contexto que implicou um aumento significativo do preço dos alimentos, depois de termos uma sociedade muito diferente na forma como acede a informação, como compra alimentos, com um contexto digital que já condiciona muito as nossas escolhas alimentares. Se pensarmos no crescimento que as aplicações de entrega de comida ao domicílio tiveram nos últimos anos, percebemos que a digitalização também está a ter impacto nos hábitos alimentares da nossa população.

VS | As medidas do PNPAS têm tido a preocupação de colocar as crianças como um grupo-alvo prioritário, até porque são os adultos de amanhã. É certo que muito já foi feito, mas fica sempre aquela sensação que ainda há muito a fazer.

MJG | Sim, sentimos que ainda há muito trabalho a fazer, naturalmente. As crianças têm sido um grupo-alvo prioritário, desde logo pelas iniciativas dirigidas para melhorar a alimentação no contexto escolar, que tem sido uma área que temos trabalhado de forma muito intensa em parceria com a Direção-Geral da Educação (DGE). Mesmo as medidas que têm um alcance em toda a população, elas têm sido definidas com o objetivo muito particular de alcançar grupos mais jovens da população. Identifico, por exemplo, a já referida lei que regula a publicidade alimentar dirigida a crianças e o já referido acordo para a reformulação dos produtos alimentares, que identificou um conjunto de categorias que são muito consumidas pelo público mais jovem, e, também, o imposto especial de consumo sobre as bebidas açucaradas, que têm um consumo muito mais elevado em crianças e adolescentes.

«Continuo apaixonada por esta área e continuo a gostar muito daquilo que faço.»

VS | O que falta fazer?

MJG | Claro que falta fazer muito. E se há pouco eu disse que temos vindo a trabalhar de forma muito intensa nas escolas para tentar melhorar a alimentação em contexto escolar, sabemos que, muitas vezes, aquilo que está no papel e aquilo que determinamos relativamente aos alimentos a disponibilizar, não é o que, efetivamente, acontece em muitas escolas. E porque, muitas vezes, não temos profissionais capacitados no terreno para que possam pôr em prática aquilo que são as orientações existentes. Por isso, essa é uma área que gostaríamos muito de trabalhar no futuro. Ter um conjunto de medidas que permitissem ter mais capacitação por parte das pessoas que no dia a dia são responsáveis pela alimentação que é fornecida às crianças nas escolas. Foi também nesse sentido que em 2023 abrimos uma call para um financiamento de um projeto específico nesta área, com o objetivo de capacitar o staff dos refeitórios escolares para uma oferta alimentar não só saudável, mas também apelativa para crianças. Mas queremos alargar esta abordagem que temos tido para as escolas a outras instituições, nomeadamente as creches, que diariamente dão apoio a muitas crianças até aos três anos de idade, que é uma fase crítica e de particular vulnerabilidade. De acordo com o estudo que fizemos na DGS, sabemos que há um espaço ainda muito grande para melhorar e temos claramente de trabalhar para que possamos ter creches com uma oferta alimentar mais adequada. Estamos a fazer isso em articulação com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, porque esta é uma área que é tutelada por essa área governativa, mas temos atualmente no nosso país o Plano de Ação da Garantia para a Infância, que contemplou especificamente esta como uma das medidas. Este é um dos desafios que temos e que será seguramente uma das áreas que iremos trabalhar num futuro próximo.

VS | Tem também coordenado tecnicamente trabalhos com relevância para os nutricionistas. A implementação da identificação sistemática do risco nutricional a todos os níveis de cuidados do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que culminou no Despacho n.º 9984/2023, é um dos mais recentes. Ficou determinado que o PNPAS será responsável por desenvolver um manual técnico de apoio à implementação deste Despacho. Em que ponto é que estamos?

MJG | Neste momento, estamos a desenhar o modelo de implementação e também a trabalhar com os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) para que todas as ferramentas, quer de identificação do risco, quer depois de aconselhamento breve para as pessoas que foram identificadas em risco, já estejam disponíveis e integradas nos sistemas de informação do SNS. Em paralelo, e ainda mais recentemente, foi publicado o Despacho n.º 12634/2023, que determina a implementação de um Modelo Integrado de Cuidados para a Prevenção e Tratamento da Obesidade. Este é um dos maiores problemas de saúde pública no nosso país e nós temos apostado muito em criar um conjunto de medidas nesta área. Assumindo que cerca de 27% da nossa população já vive com obesidade, temos de ter uma resposta disponível por parte do SNS. Neste momento, a resposta não é suficiente e este Despacho também prevê melhorar a abordagem terapêutica da obesidade. Considero que esta é uma área onde os nutricionistas têm um papel fundamental, e se, de facto, houver um reforço destes profissionais no SNS, em particular nos cuidados de saúde primários (CSP), podemos verdadeiramente fazer uma revolução e melhorar aquela que é a resposta que damos para as pessoas que vivem com obesidade no nosso país.

VS | Como referiu anteriormente, a DGS abriu, no passado dia 4 de dezembro, um concurso público para a realização de um novo INAAF. O PNPAS será um dos promotores da iniciativa. Que tipo de população espera encontrar neste inquérito? Acha que o cenário vai melhorar ou piorar?

MJG | Temos alguns dados que nos podem já dar algumas pistas nesta área. Sobre a prevalência da obesidade, a OMS tinha uma meta definida para 2025, que era travar o crescimento da obesidade. De acordo com as projeções, muito provavelmente, nenhum país da Região Europeia da OMS está em condições de atingir essa meta. Portanto, são as projeções que temos também para o nosso país. Os últimos resultados do Childhood Obesity Surveillance Initiative (COSI), estudo de vigilância da obesidade infantil, publicado em 2023, referente a 2022, também nos mostram que não mantivemos a tendência para uma diminuição da prevalência de excesso de peso e obesidade infantil. Ao contrário daquilo que vínhamos a observar desde 2008 até 2019, em que havia uma tendência invertida, em que estávamos a contrariar o crescimento da obesidade infantil, os dados mais recentes dizem que houve um aumento da prevalência da obesidade infantil. Naturalmente que refletimos sobre estes dados – o que é que pode justificar esta alteração na tendência? –, mas a verdade é que os resultados de outros países da Região Europeia da OMS também apontam no mesmo sentido e a pandemia surge como um dos fatores que poderá explicar este aumento, mas não sabemos ao certo. Precisamos de ter mais dados e precisamos de verificar se esta tendência crescente se vai manter ou se foi algo pontual. Mas no COSI, quando olhamos para aquilo que são os dados de consumo alimentar e atividade física, também nos mostram que os indicadores relacionados com o consumo alimentar em crianças apresentaram uma melhoria entre 2019 e 2022, sendo que temos uma maior percentagem de crianças a consumir diariamente fruta e hortícolas, temos uma maior percentagem de escolas a cumprir com as orientações para a oferta alimentar, temos quase a totalidade das escolas a não ter publicidade alimentar dirigida a crianças. Portanto, naquilo que é o retrato na área da alimentação, parece que o cenário é um pouco mais positivo do que em 2019.

«Os nutricionistas portugueses foram-se conseguindo afirmar ao longo dos últimos anos.»

Hoje em dia, a sociedade mudou profundamente, e muito em resultado da digitalização, que tem tornado o acesso a alimentos pouco saudáveis muito mais fácil e conveniente. E tem, também, aumentado aquilo que é a nossa exposição às estratégias de marketing. Se tivermos este tipo de aplicações instaladas nos nossos smartphones, conseguimos perceber que à hora do almoço ou à hora do jantar recebemos uma notificação com uma promoção. Estes são estímulos que não estavam presentes no passado e que hoje, facilmente, entram na nossa vida e que, às vezes, são difíceis de resistir. Se pensarmos que trabalhamos muitas horas, muitas vezes chegamos a casa com pouca disponibilidade para cozinhar e, de repente, alguém nos vem trazer a comida a casa, isso é muito conveniente. Dados de outros países mostram que o tipo de restaurantes que estão disponíveis nestas aplicações são, essencialmente, restaurantes que não têm uma oferta alimentar muito adequada. Isto pode condicionar aqueles que são os nossos hábitos alimentares. E depois tivemos também um aumento significativo no preço dos alimentos. E sabemos que o preço é um fator determinante das escolhas alimentares e, em particular, das pessoas que têm um estatuto socioeconómico mais baixo, que são aquelas que têm menor acesso a uma alimentação saudável e onde encontramos uma maior prevalência de obesidade e de outras doenças crónicas associadas à alimentação inadequada. Este contexto de aumento do preço dos alimentos também nos preocupa. É um contexto em que se verificaram tantas alterações, em que temos alguma dificuldade em identificar o que é que poderemos encontrar enquanto resultados de um novo inquérito. Mas claramente que temos aqui um cenário que pode conduzir a uma situação alimentar da nossa população não muito favorável.

VS | O PNPAS teve um papel importante na criação do cabaz “IVA Zero”. Em primeiro lugar, como avalia esta medida? Em segundo lugar, como olha para o seu término?

MJG | Esta medida já foi introduzida como uma medida transitória. A participação do PNPAS restringiu-se, essencialmente, à identificação daquilo que seria um cabaz alimentar saudável para que depois, a partir desse cabaz, pudesse ser identificada uma lista mais reduzida de alimentos aos quais esta isenção do IVA iria ser aplicada. Nunca estivemos envolvidos no desenho da medida como um todo. Enquanto nutricionista, tenho alguma dificuldade em identificar quais é que podem ser as medidas mais adequadas para fazer face ao aumento do preço dos alimentos motivado pela inflação, se é por via do aumento dos rendimentos ou se é por via da redução dos impostos. Relativamente àquilo que são os resultados da medida, não temos informação suficiente para poder fazer a sua devida avaliação. Era uma das áreas que gostávamos de trabalhar, mas implica termos acesso a determinado tipo de dados que têm o seu custo e, neste momento, não nos foi possível. Mas gostávamos de fazer uma avaliação mais consistente e não só verificar se a medida implicou uma diminuição do preço dos alimentos ou não. Fomos percebendo que o preço dos alimentos foi-se alterando, mesmo durante o período de aplicação da medida. Parece que numa fase inicial houve uma diminuição do preço dos alimentos. Os dados atuais já não apontam nesse sentido, já temos, provavelmente, valores superiores àqueles que se verificavam antes da implementação da medida. Confesso que tenho alguma dificuldade em fazer uma avaliação da medida, porque mais importante do que avaliar se ela se refletiu no preço dos alimentos, é se isso depois teve algum efeito naquilo que são as escolhas alimentares da população. E isso é o que, de facto, nos importa na perspetiva da saúde.

VS | É uma acérrima defensora da Dieta Mediterrânica (DM). O que é preciso fazer para que os portugueses abracem mais este modelo de alimentação?

MJG | É uma pergunta difícil, porque os últimos dados mostram que temos uma pequena percentagem da população portuguesa a ter uma elevada adesão à DM. E quando procuramos, no último trabalho que fizemos, identificar quais é que eram os fatores que comprometiam a adesão à DM, identificámos vários, mas um deles, provavelmente um dos mais importantes, tinha a ver com a incapacidade e a falta de competência para cozinhar de forma adequada alguns alimentos, pelo menos de uma forma que permitisse que esses alimentos sejam apreciados por toda a família. É muito mais difícil cozinhar hortícolas, cozinhar pescado, de forma a que eles se tornem numa refeição saborosa. E também é preciso mais tempo, tempo que, muitas vezes, não temos. Esses são fatores que parecem condicionar a adesão. Por outro lado, o preço de alguns alimentos também é um fator impeditivo. O caminho para tentarmos trazer a DM para a mesa dos portugueses? Provavelmente, o passo inicial que temos de dar é tornar as refeições que são fornecidas pelas instituições públicas, refeições que sejam verdadeiramente representativas da DM. Tentamos fazer isso com a alimentação em contexto escolar, onde nas últimas orientações apresentámos um conjunto de propostas de pratos mediterrânicos e ementas mediterrânicas. Vejo as cantinas públicas como algo que pode potenciar muitas mudanças. E quando falo de cantinas públicas, não falo só das cantinas das escolas, mas também das universidades, dos hospitais. O Estado gasta muito em alimentação, naquilo que é a sua oferta de cantinas públicas.

VS | O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou, no passado dia 12 de dezembro, o decreto da AR que altera o Estatuto da Ordem dos Nutricionistas (ON). Como fica agora a profissão? Há motivos para preocupação?

MJG | No passado, tínhamos o nosso Ato definido, mas não fazia parte do Estatuto da ON. Neste momento, o Estatuto da ON prevê o Ato do Nutricionista, mas parece-me que, à semelhança do Estatuto das outras Ordens Profissionais, tem uma “alínea” que permite que, se devidamente enquadrado, outros profissionais possam desempenhar aquilo que são as funções que constam no nosso Ato. E sabemos que esta é uma área onde existe o exercício por parte de outros profissionais que não têm competência para o efeito. Portanto, parece-me que aí temos alguns riscos. Parece-me que o novo Estatuto também procura reduzir aqueles que são os entraves no acesso à profissão. Refiro-me ao estágio profissional de acesso à ON, na medida em que obriga, e bem, que o estágio seja remunerado, coisa que, neste momento, não acontece para a generalidade dos nutricionistas estagiários. Esse é um ponto muito positivo. O estágio de acesso à ON tem de ser obrigatoriamente remunerado e tem de ser realizado em instituições que verdadeiramente possam fornecer aquilo que são as competências que devem ser adquiridas neste período. Também vejo aqui alguns desafios na forma como a ON vai operacionalizar estas alterações, porque vai obrigar, eventualmente, a uma identificação de um conjunto de locais que possam acolher os nutricionistas estagiários nestas condições. Mas isso parece-me extremamente importante, porque a qualidade de vários estágios de acesso à ON não era assegurada e não tínhamos mecanismos que permitiam assegurar essa qualidade, nem permitiam assegurar a sua efetiva remuneração.

VS | Quais são os grandes desafios para os nutricionistas portugueses?

MJG | A nossa profissão enfrenta um conjunto de desafios. Se, por um lado, é cada vez mais reconhecida pela sociedade como um todo, pelos outros profissionais, em particular pelos profissionais de saúde, ainda temos sentido dificuldade de ocupar o espaço em alguns setores, em algumas instituições. Uma das áreas é claramente os CSP, onde temos um número muito reduzido de nutricionistas, sendo um nível de prestação de cuidados onde os nutricionistas têm um papel fundamental. Mas, por outro lado, e também para apresentar uma visão otimista, os nutricionistas portugueses foram-se conseguindo afirmar ao longo dos últimos anos, e quando comparo o contexto português com o contexto de outros países europeus, nós conseguimos conquistar o nosso lugar nos CSP, nas autarquias, nos hospitais, em locais onde, noutros países, temos alguma dificuldade em encontrar estes profissionais. Conseguimos abrir este caminho. Estamos numa fase em que o SNS precisa de profissionais e tem dificuldade em ter esses profissionais, e os nutricionistas estão disponíveis e estão capacitados para trabalhar naquilo que são as áreas prioritárias para a saúde da população. Portanto, vejo o futuro mais positivo e acredito que vamos ser capazes de melhorar aquela que é a força de trabalho nesta área. Os dois Despachos que foram publicados recentemente valorizam o papel dos nutricionistas e o quanto podem melhorar o estado nutricional nos doentes que estão em risco e tratar a obesidade. Estas devem ser prioridades das nossas unidades de saúde. Quero acreditar que estes documentos também vão abrir portas para que mais nutricionistas possam estar no SNS.

“Para quem gosta da área da política nutricional, ter as funções que tenho é quase o topo”

VS | Entre tanta paixão e dedicação, entre tantas funções e compromissos, ainda encontra tempo para si e para os seus? Como concilia a vida profissional e familiar?

MJG | Trabalho a 100% na FCNAUP, onde sou docente. Não estou em regime de exclusividade, precisamente para poder acumular as funções de diretora do PNPAS. Mas, de facto, é uma gestão do tempo difícil, porque o meu trabalho no programa exige, provavelmente, trabalhar mais 35 horas semanais. Mas tenho tido muita compreensão da direção da FCNAUP. Naturalmente que acumular a faculdade com as funções na DGS implica reduzir muito do tempo que tenho para a família, para os amigos. Mas, enquanto aqui estiver e enquanto assumir este compromisso, tentarei fazer o máximo possível. A atividade aqui é muito intensa, as necessidades aparecem a cada minuto e com respostas que têm de ser dadas, às vezes, em menos de 24 horas. É difícil estar desligada, mesmo durante as férias, mesmo durante os fins de semana, porque obriga a uma resposta constante.

VS | Aos 37 anos, é diretora do PNPAS e professora da FCNAUP. A nível internacional, tem colaborado com a OMS, sendo um ponto focal do Ministério da Saúde para as áreas da alimentação saudável, nutrição e obesidade, entre outras responsabilidades. O que virá a seguir? Quais são as suas ambições? Onde se imagina daqui a cinco ou dez anos?

MJG | Nunca fui de fazer planos. Quando terminar as minhas funções na DGS, vejo-me a regressar à FCNAUP com mais disponibilidade – uma das áreas que deixei para trás foi a área da investigação –, com vontade de fazer tudo aquilo que não consegui fazer ao longo destes anos. Com vontade de escrever, porque esse é um dos objetivos que eu e o Prof. Pedro Graça temos, publicar um livro sobre política nutricional. Mas não tenho nenhum objetivo depois da minha colaboração com a DGS terminar, nem estou a pensar que termine num futuro próximo. Neste momento, sinto-me com vontade de continuar. Claro que esta situação é sempre muito dinâmica, e aquilo que digo hoje pode já não ser verdade amanhã. Mas, como disse no início, gosto realmente daquilo que faço. Para quem gosta da área da política nutricional, ter as funções que tenho é quase o topo.

VS | Para terminar, uma pergunta extra: como é que se alimenta a “Nutricionista do Ano”?

MJG | Sou relativamente regular naqueles que são os meus hábitos alimentares. Gosto de acordar cedo, com tempo, para poder tomar o pequeno-almoço com tranquilidade. Para mim, é mesmo a refeição mais importante e que mais prazer me dá. Habitualmente, almoço fora de casa, perto da faculdade, e faço uma refeição completa, com sopa, tentando sempre escolher sítios que me permitem ter um consumo de hortícolas, o que nem sempre é fácil quando consumimos fora de casa. Por vezes, vou almoçar a um vegetariano, mas não sou vegetariana. É uma das estratégias que me permite variar, equilibrar e consumir mais hortícolas do que se fosse uma refeição com carne ou peixe. Depois é um bocadinho mais complicado, quando chego a casa, cansada. Às vezes, pela questão da falta de tempo, nem sempre tenho disponibilidade para cozinhar, nem sempre faço uma refeição de jantar completa, muitas vezes como sopa. Mas, naturalmente, procuro ter uma alimentação saudável. Como qualquer pessoa, tenho os meus prazeres e como de tudo um pouco, não sou nada fundamentalista na alimentação. É uma questão de equilíbrio.

VS | Há algum prato a que não consiga resistir?

MJG | Gosto muito de pratos de panela, no geral, e gosto muito de pão. Então, um dos meus pratos preferidos é açorda de bacalhau.