Afinal, o que nos dizem os números? 1998

Em estatística, é frequentemente referido o exemplo dos dois amigos que compram dois frangos para o almoço. Assume-se que havendo dois frangos para duas pessoas, cada um deles comeria um frango (cálculo da média aritmética), mas, no limite, um pode comer os dois frangos e o outro nenhum! Este exemplo é um alerta para os riscos da simplificação da análise aos números e a sua colagem à realidade. Vem isto a propósito da última edição da Balança Alimentar Portuguesa (BAP), um instrumento analítico de natureza estatística que visa estimar o consumo alimentar do ponto de vista da oferta dos alimentos. Coincidindo com o Dia Mundial da Alimentação (DMA), a divulgação dos principais resultados da BAP logo gerou as mais diversas interpretações e títulos de notícias – mas, à semelhança do exemplo dos frangos, que colagem terão essas interpretações com a realidade?

Antes de mais, talvez convenha clarificar o que é ao certo a BAP. A cada 5 anos o INE publica um quadro com informação relativa ao padrão de abastecimento alimentar do país, usando os dados disponíveis da produção de produtos primários e alguns processados, contabilizando ainda fatores como as importações/exportações. Consegue-se assim obter as quantidades potencialmente disponíveis para consumo humano, que são depois traduzidas em calorias, macro- e micro- nutrientes. Assim, a BAP é uma ferramenta que estima o consumo per capita, com base na produção de alimentos disponíveis, distribuídos pela população residente. Não é, portanto, um instrumento que avalie o consumo alimentar efetivo, como acontece com o IAN-AF. Não significa que não seja uma ferramenta válida, apenas que deve ser interpretada com as devidas limitações: a disponibilidade de alimentos não é a mesma coisa que o seu consumo real.

Significa isto que é necessário algum sentido crítico perante notícias como as que foram amplamente divulgadas no DMA. Afirmar que os portugueses comem o dobro das calorias recomendadas é demasiado simplista, pois o que o relatório da BAP2020 menciona é que “o aporte calórico diário médio disponível para consumo por habitante foi de 4.075 calorias”. Estarem disponíveis para consumo o dobro das calorias recomendadas em média para um adulto não é a mesma coisa que os portugueses comerem o dobro do recomendado, pois, entre outros fatores, não sabemos se foram consumidas todas as calorias disponíveis e de que forma essa distribuição aconteceu em cada grupo populacional com as suas diferentes necessidades. Adicionalmente, convém analisar de que forma esta interpretação se compara com os demais dados existentes. Por exemplo, o mais recente IAN-AF mediu a ingestão energética diária média em 1910 calorias, metade daquilo que agora se estima. Mesmo considerando que também a metodologia do IAN-AF tem as suas limitações, ainda assim a discrepância entre os valores é elevada e merece um olhar mais atento, sobretudo por parte dos nutricionistas.

É certo que é necessário chamar a atenção para os problemas existentes e que, quanto mais “dramáticos” forem os números, maior a probabilidade de terem destaque nos meios de comunicação social. Mas os especialistas, neste caso os nutricionistas, devem ser rigorosos na análise e interpretação dos estudos e dados disponíveis, contribuindo para um maior esclarecimento da população em geral. Análises simplistas e interpretações redutoras contribuem para alimentar o alarmismo, o que, a prazo, tem o efeito precisamente oposto, pois banaliza os cenários pessimistas e dessensibiliza as pessoas das reais preocupações.

Rodrigo Abreu
Nutricionista – Managing Partner na Rodrigo Abreu & Associados
Fundador do Atelier de Nutrição