A perda gestacional ocorre em cerca de 15 a 25% das gestações, sendo considerada perda de gestação recorrente a partir de 2 ou mais perdas gestacionais. As causas são diversas, incluído fatores genéticos, imunológicos, endócrinos e anatómicos. No entanto, em cerca de 50% dos casos é-lhes atribuído um diagnóstico idiopático. Alguma evidência recente sugere que a microbiota e a sua interação com o sistema imunitário, podem estar na base desta problemática.
Até metade do século XX acreditava-se que o útero era um órgão estéril. No entanto, a melhoria das técnicas de sequenciação genética permitiram que a evidência atual seja consistente a afirmar que a cavidade uterina apresenta uma microbiota diversificada, apesar de pouco colonizada quando comparada com o trato genital inferior. Ainda se encontra por esclarecer a origem destes microrganismos, levantando-se como possíveis hipóteses as de que estes microrganismos poderão ser provenientes do intestino, cavidade oral, corrente sanguínea, procedimentos ginecológicos (como inserção de dispositivos intrauterinos), hábitos sexuais e ascensão vaginal.
A microbiota desempenha um papel de extrema importância na saúde humana, tendo a capacidade de regular e influenciar o nosso metabolismo, fisiologia, função imunitária e assim, em última análise, contribuírem para o estado de saúde/doença do indivíduo. Os estudos que avaliam a microbiota do endométrio e o seu papel na fertilidade são ainda limitados e por esse motivo é feita a extrapolação do conhecimento científico de outros locais colonizados, como a microbiota intestinal e oral. Aquilo que se sabe é que a microbiota intestinal tem um papel fulcral para o desenvolvimento do sistema imunitário do hospedeiro, o que leva a comunidade científica a acreditar que a microbiota do endométrio apresenta também um papel importante no sistema imunitário deste órgão, e consequentemente, na fertilidade.
A microbiota uterina pode modular o epitélio endometrial através dos recetores de reconhecimento padrão (PRRs) presentes nestas células, levando à ativação de fatores de transcrição, o que pode conduzir a alterações da barreira epitelial. Em resposta à microbiota presente na cavidade uterina, verifica-se a ativação de um determinado tipo de células do sistema imunitário, que levará à produção de citocinas, moléculas estas que modulam também a permeabilidade deste tecido. Além disto, uma microbiota saudável dificulta o crescimento de espécies patogénicas e contribui para a saúde uterina. Assim, constatamos que consoante o tipo de microrganismos presentes, poderemos ter a modulação do epitélio endometrial, tecido fundamental para que haja implantação e uma possível gravidez.
Mensalmente o endométrio sofre alterações fisiológicas que permitem que este esteja preparado para a implantação de um blastocisto. Para que a nidação seja viável são necessárias exigentes mudanças e adaptações por parte do sistema endócrino e imunológico, de forma a tolerar um feto que expressa antígenos “estranhos” ao sistema imunitário da mãe.
O processo de imuno-tolerância está dependente de diversos mediadores e células do sistema imune inato e adaptativo. Atualmente sabe-se que, na existência de uma predominância células Th1 e Th17, existe uma maior prevalência de possíveis complicações na gravidez. Por contraste, um aumento de células Th2 e Treg, associa-se a uma gravidez normal e sem complicações.
Além das células T, por parte da resposta imune inata existe uma elevada predominância das células NK uterinas (70% das células que estão na interface materno-fetal), que vão permitir a tolerância ao feto, sendo fulcrais para o crescimento fetal e formação da placenta.
A microbiota vai interferir com as células do sistema imunitário e modular as mesmas. Além disto, já são conhecidas adaptações teciduais em células epiteliais intestinais por consequência da microbiota, tanto a diferenciação celular, regeneração destas células, permeabilidade epitelial e vascularização. No útero, a microbiota pode contribuir para a remodelação necessária para um estado recetivo do endométrio e numa possível gravidez.
A composição da microbiota do endométrio ainda não está totalmente estabelecida, no entanto alguns autores caracterizam-na em Lactobacillus dominante (> 90% Lactobacillus spp.) e Lactobacillus não dominante (> 10% de bactérias não Lactobacillus como Clostridium, Parvimonas, Prevotella, Megasphera, Sneathia). Num estudo publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology caracterizaram a microbiota endometrial de 18 mulheres saudáveis propostas para fertilização in vitro (FIV), sendo 12 Lactobacillus dominante e 6 Lactobacillus não dominante. Foram encontradas associações entre a abundância de Lactobacillus e o resultado da gravidez. Quando as mulheres apresentavam um fenótipo endometrial não dominado por Lactobacillus, no momento da transferência do embrião, a implantação foi diminuída (23,1% versus 60,7%) e as taxas de sucesso de gravidez também diminuíram (13,3% versus 58,8%). Os resultados destes parâmetros foram ainda mais reduzidos nas mulheres em que Gardenerella vaginalis e Streptococcus estavam presentes.
Atualmente sabe-se que a microbiota intestinal é fortemente influenciada pela ingestão alimentar, sendo este um dos pontos de atuação na prática clínica. Além disto, existe um cross-talk entre a microbiota intestinal e vaginal, modulando-se de forma mútua. A relação deste eixo, microbiota intestinal-microbiota vaginal, e a sua relação com a microbiota endometrial, começa a ser alvo de análise, podendo o estudo do impacto da alimentação na modulação da microbiota do endométrio, vir a revolucionar a intervenção clínica na mulher com perda de gestação recorrente.
Mafalda Pinto Esteves; Finalista da Licenciatura Ciências da Nutrição da NOVA Medical School; Investigadora NOVA