“A qualidade da dieta associa-se ao risco de doenças mentais” 2500

Têm sido identificados vários mecanismos de comunicação entre o intestino e o cérebro, nomeadamente «metabolitos microbiais, vias imunes, neurais e metabólicas, algumas das quais poderão ser moduladas pela dieta».

A relação entre a alimentação e a saúde mental é antiga. «Basta-nos recordar a associação entre o escorbuto e perturbações mentais, irritabilidade e alteração de humor, sintomas que seriam revertidos com a ingestão de citrinos (vitamina C)», declara Juliana Morais, nutricionista e investigadora no CINTESIS – Center for Health Techonology and Services Research, acrescentando que «três séculos depois da descoberta de James Lind, já se conhecem melhor os mecanismos que relacionam a alimentação e a saúde mental».

Hoje começa-se mesmo a falar no conceito de «“psiquiatria nutricional” (termo introduzido por Felice N. Jacka, Deakin University, Austrália), que é uma área de investigação emergente focada em evidência rigorosa sobre o papel da dieta na saúde mental», explica Gabriela Ribeiro, nutricionista especialista em Nutrição Clínica e professora auxiliar convidada na NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas. Existe, assim, evidência de que «a qualidade da dieta associa-se ao risco de doenças mentais tais como a depressão. Além disto, estudos de intervenção que implementaram alterações dietéticas ou testaram alimentos com compostos bioativos como coadjuvantes para o tratamento de doenças mentais (como a depressão) mostraram-se promissores», continua a professora, acrescentando que, «adicionalmente, vários estudos, maioritariamente pré-clínicos têm evidenciado as vias biológicas que medeiam as relações entre a dieta e a saúde mental que apontam para o eixo microbiota – intestino – cérebro como um dos principais alvos terapêuticos para intervenções dietéticas».

No entanto, esta área está ainda limitada «pela escassez de ensaios clínicos e limitações metodológicas associadas à implementação e avaliação de intervenções dietéticas com impacto em outcomes de saúde mental. Desta forma, apesar do potencial promissor da “psiquiatria nutricional” serão necessários estudos adicionais antes de se estabelecerem orientações específicas para a sua operacionalização na prática clínica», conclui Gabriela Ribeiro.

A comunicação entre intestino e cérebro

Efetivamente, tem havido «uma valorização crescente da relação crítica entre a dieta e a saúde do cérebro e, consequentemente, das emoções e da saúde mental», declara Patrícia Oliveira-Silva, professora de neurociências e diretora do Human Neurobehavioral Laboratory (HNL) da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto). Sendo que o conhecimento sobre como os alimentos «nos fazem sentir tem evoluído graças ao avanço tecnológico, que nos tem permitido olhar para o cérebro de uma forma diferente», acrescenta.

Neste sentido, os alimentos têm «efeito na quantidade de químicos no cérebro e ativam determinadas cascatas bioquímicas que influenciam a forma como nos sentimos: felizes, depressivos, com dificuldades em regular o ciclo de sono e vigília, entre várias outras condições». A ligação entre o que chega ao estômago e o cérebro é intrínseca e direta, tendo, como revela a diretora do HNL, «início ainda no útero porque tanto o intestino como o cérebro se originam das mesmas células no embrião. E esses dois tecidos permanecem conectados e em estreita comunicação ao longo da vida». Uma das principais “vias rápidas” que ajudam a perceber a ligação entre o sistema gastrointestinal e o cérebro é «o nervo vago, conhecido como um sistema de mensagens químicas bidirecional entre esses dois órgãos. É por essa razão que a maior parte das pessoas percebe que a ansiedade e as “borboletas no estômago” são dois fenómenos interligados», indica Patrícia Oliveira-Silva.

Na verdade, têm sido identificados vários mecanismos de comunicação entre o intestino e o cérebro, «incluindo metabolitos microbiais, vias imunes, neurais e metabólicas, algumas das quais poderão ser moduladas pela dieta», sublinha Gabriela Ribeiro, dando um exemplo: «um padrão alimentar saudável (fibra dietética, polifenóis, alimentos fermentados) pode promover o crescimento de bactérias intestinais benéficas, que, por sua vez, vão estimular a produção de metabolitos bioativos, neurotransmissores e hormonas intestinais que podem afetar a função cerebral e o comportamento através de vias de sinalização diretas ou indiretas». Por outro lado, padrões alimentares pouco saudáveis (dietas tipo ocidentalizadas) podem resultar «na proliferação de bactérias intestinais prejudiciais resultando em processos cerebrais disfuncionais e neuro inflamação através de alterações no metabolismo dos ácidos biliares, permeabilidade intestinal, inflamação e vias metabólicas». Outros mecanismos que, segundo a professora, «têm sido implicados na relação entre a dieta e saúde mental incluem a função do eixo hipotálamo – pituitária – adrenal (envolvido na regulação do cortisol), o stresse oxidativo, metabolismo do triptofano, inflamação, disfunção mitocondrial e epigenética (primeiros anos de vida e exposição à dieta materna/paterna)».

No entanto, apesar do fascínio que se gera à volta deste tema é «fundamental não perder o foco», alerta Gabriela Ribeiro, explicando que «as doenças mentais são complexas, multifatoriais e com consequências graves. Os seus sintomas podem ser heterogéneos e não têm origem num fator isoladamente. Assim, não podemos associar sintomas de saúde mental a causas alimentares específicas, pois os mesmos resultarão de um estado patológico global».

A Dieta Mediterrânica

«Evidência de estudos observacionais tem demostrado associações entre a adesão a padrões alimentares saudáveis e menor risco de doença mental, incluindo a depressão, independentemente de outros comportamentos de saúde, tais como, atividade física, tabagismo ou de outros fatores confundidores, incluindo socioeconómicos», declara Gabriela Ribeiro.

Há um consenso, segundo Patrícia Oliveira-Silva, entre os investigadores, «sobre que tipos de dietas são melhores ou piores e que a diversidade no consumo dentro das dietas mais recomendadas é um fator-chave». Deste modo, por exemplo, «há muita investigação a indicar que as dietas tradicionais do Mediterrâneo, e outras como da Escandinávia e do Japão, ajudam a preservar o nosso bem-estar psicológico e cognitivo», revela a diretora do HNL.

No que toca especificamente à Dieta Mediterrânica, no estudo PREDIMED, que testou o impacto de variantes desta dieta em outcomes cardiovasculares verificou-se, como indica Gabriela Ribeiro, «uma tendência não significativa no sentido da prevenção da depressão pela dieta Mediterrânica suplementada com oleaginosas, que se revelou estatisticamente significativa nos participantes com diabetes tipo 2, que representavam quase metade da amostra do estudo». Não obstante, «é importante realçar que apesar destes resultados promissores, apenas um estudo (SMILES trial) avaliou especificamente o impacto de uma intervenção dietética em outcomes de saúde mental. Este incluiu participantes com depressão major que receberam intervenção dietética (ModiMedDiet, uma variante da dieta Mediterrânea) ou uma intervenção controlo (suporte social)». Tendo-se verificado que os participantes que fizeram a dieta «durante as 12 semanas diminuíram significativamente os seus níveis de depressão, em relação ao grupo de controlo, o que representa claramente o impacto que a alimentação pode ter na saúde mental», conclui a professora.

As mais-valias da Dieta Mediterrânica residem, basicamente, como aponta Patrícia Oliveira-Silva, no consumo «principalmente de frutas e vegetais (que apresentam altos níveis de antioxidantes e polifenóis); nozes e grãos integrais (cujo consumo está associado a um menor risco de doenças cardiovasculares e diabetes e melhor circulação para o cérebro, reduzindo os marcadores de inflamação); peixe, carnes magras com moderação, azeite e até um pouco de vinho tinto». Segundo a nutricionista, «até mesmo os polifenóis do café têm sido estudados e associados a benefícios para o funcionamento cognitivo e a saúde mental, no geral».

Por seu turno, Juliana Morais destaca a importância da fibra alimentar, «ainda que nem toda tenha função prebiótica, mas a ingestão de inulina, frutooligossacarídeos (FOS), galactooligossacarídeos (GOS), amido resistente e outras fibras solúveis são uma boa aposta». Algumas fontes alimentares destas fibras, segundo a investigadora, são «frutas e vegetais como a banana, a aveia, o alho-francês, os aspargos e a chicória». Outro conjunto de alimentos a promover será «os frutos vermelhos devido às suas propriedades antioxidantes, anti-inflamatórias e neuroprotetoras». Sendo «a Dieta Mediterrânica um padrão alimentar que promove o consumo destes alimentos e, por isso, a evidência dos seus efeitos na microbiota intestinal é muito positiva e robusta», sintetiza Juliana Morais.

O que evitar?

Há muitas evidências que «relacionam as dietas ocidentais mais estereotipadas e maioritariamente dominadas por alimentos processados ou ultraprocessados a índices mais elevados de depressão e ansiedade», sublinha Patrícia Oliveira-Silva, especificando que «as preocupações com essas dietas prendem-se com a elevada quantidade de gordura, açúcares e outros constituintes artificiais, que contribuem para o aumento da inflamação gastrointestinal e, consequentemente, comprometem a comunicação e a troca de nutrientes que ocorre entre o sistema gastrointestinal e o cérebro, contribuindo para uma série de distúrbios neuropsiquiátricos

O consumo de açúcar e sal «promovem o aumento de bactérias Gram-negativas que libertam uma endotoxina na sua membrana exterior – o LPS (lipopolissacarídeo) – provocando um estado de inflamação de baixo grau», especifica Juliana Morais, acrescentando que «se sabe que a neuroinflamação é uma condição subjacente a doenças como a depressão, ansiedade e também patologias neurodegenerativas como o Alzheimer ou a doença de Parkinson». No fundo, como reforça a investigadora, «um padrão alimentar caracterizado por quantidades elevadas de açúcar e sal e, por outro lado, parco em fibras, é tipicamente associado à disbiose intestinal. Ou seja, a um perfil microbiano inflamatório e danoso para o hospedeiro. Seja por uma baixa diversidade de micróbios no intestino, seja pela proporção aumentada de bactérias “más”, a disbiose intestinal leva ao aumento da permeabilidade intestinal e, consequentemente, a maiores níveis de inflamação sistémica e neuronal».

No que toca ao açúcar, em particular, Patrícia Oliveira-Silva refere que «passamos décadas a acreditar que a atração que sentimos pelos alimentos açucarados era determinado pelo seu sabor adocicado. Mais, recentemente, temos percebido que esse processo é muito mais complexo e interessante: no sistema gastrointestinal há neurónios que respondem diretamente ao açúcar, independentemente do sabor que os alimentos tenham. Esses sensores enviam informação para outros neurónios no cérebro que ativam um circuito de recompensa e liberta dopamina, que é um neurotransmissor cerebral que nos faz sentir bem. E esse é um processo tão fundamental no nosso organismo que em alguns experimentos laboratoriais onde o sabor adocicado foi mascarado, o mesmo mecanismo é desencadeado. Por mais que o cérebro contribua para o chamado “vício alimentar” ou “vício pelo açúcar”, e o sabor adocicado seja detetado pela língua, o desejo de consumir alguns alimentos aparece já no sistema gastrointestinal. Desses mecanismos ocorrem várias alterações químicas decorrentes da plasticidade neural». Posto isto, hoje sabe-se que o consumo prolongado de produtos muito açucarados «resulta numa diminuição da capacidade de controlar os impulsos. Noutras palavras, somos sequestrados pelo desejo de consumir mais produtos ricos em gordura ou em açúcar», conclui Patrícia Oliveira-Silva.

Como quebrar o círculo?

A boa notícia, como revela Patrícia Oliveira-Silva, «é que as mudanças na dieta podem não apenas comprometer a via de comunicação entre o estômago e o cérebro, mas também potenciá-la».

Assumindo que se estabelece um círculo vicioso entre alimentação, microbiota e a (falta de) saúde mental, «com consequências muito graves para a saúde do hospedeiro, é importante alterar comportamentos», reforça Juliana Morais. Daí que para a investigadora, o «ideal seja adotar comportamentos de estilo de vida preventivos. Estes comportamentos passam pela seleção de alimentos com qualidade, prática de atividade física regular e ainda uma rotina de sono bem estabelecida». Quando o problema já existe, «deve-se procurar ajuda profissional para a implementação e adesão a estas práticas». Além disso, ainda de acordo com Juliana Morais, «a toma de psicobióticos parece ser promissora: são microorganismos vivos ou prebióticos que conferem benefícios para a saúde mental do hospedeiro. São, portanto, psicotrópicos que atuam em mecanismos específicos do sistema nervoso».

Estar atento aos sinais

O papel do nutricionista no âmbito da alimentação e da saúde mental poderá passar, como indica Gabriela Ribeiro, «pela implementação de intervenções dietéticas específicas coadjuvantes do tratamento médico das doenças mentais». Idealmente, ainda segundo a professora, «a intervenção nutricional deverá ser baseada em testes diagnósticos objetivos, incluindo, dados bioquímicos e informação sobre a microbiota intestinal. Existe, no entanto, ainda um caminho a percorrer para se solidificar as especificidades das intervenções a implementar».

Além da normal promoção de hábitos alimentares (e de vida) saudáveis gerais e dos alimentos, Juliana Morais acredita que o nutricionista «tem um papel maior do que aquele focado na alimentação, devendo estar atento aos sinais de alerta (tristeza, ansiedade, vontade de chorar, falta de interesse, perturbações no sono, dores físicas, cansaço) que o paciente possa demonstrar». Sendo que a interpretação destes sinais, para a investigadora, «é importante para reencaminhar e aconselhar o paciente/cliente a procurar um profissional da saúde mental (psicólogo, psiquiatra)».

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Os hábitos alimentares (também) são condicionados pela saúde mental

Da mesma forma que «o corpo influencia o que se passa na nossa mente através de várias vias, nomeadamente através de substâncias químicas que são libertadas, o resultado da nossa experiência psicológica também tem impacto a nível do corpo», declara Patrícia Oliveira-Silva, explicando, neste sentido, que «muitos de nós percebem que comemos por motivos emocionais: quando estamos tristes ou ansiosos, a comida é um excelente conforto. Os alimentos são com frequência o último bastião de conforto quando outros recursos não estão disponíveis. Ou, para alguns, “o principal recurso”, o que tem contribuído para problemas decorrentes de um consumo alimentar exagerado ou de más escolhas a nível alimentar».

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O que é e o que faz

A microbiota intestinal

É «o conjunto de bactérias, vírus e fungos que habitam o intestino humano produzem metabolitos que vão influenciar o nosso metabolismo, mas também as nossas emoções, desempenho cognitivo e, ainda, a regulação do apetite», sintetiza Juliana Morais. Resumidamente, pode servir, segundo a investigadora, como intermediário na relação entre a alimentação e a saúde mental de quatro maneiras:

– «Modulação do sistema imunitário, podendo causar neuroinflamação.»

– «Ativação de células enteroendócrinas – ainda que as células enteroendócrinas representem apenas 1% das células epiteliais no trato GI, estas são células sensoriais que respondem a estímulos da microbiota. Por exemplo, uma microbiota disbiótica pode levar a uma menor produção de serotonina (hormona da felicidade) pelas células enterocromafins.»

– «Produção de neurotransmissores. Espécies de Escherichia e Lactobacillus são produtores de GABA (ácido amino-butírico) – o principal neurotransmissor inibitório do sistema nervoso.»

– «Comunicação direta com o nervo vago e células neuropods

Como manipulá-la

O grupo do Human Neurobehavioral Laboratory da Universidade Católica Portuguesa no Porto tem realizado vários estudos para avaliar como a microbiota intestinal interfere no funcionamento cerebral e nas condições clínicas associadas ao sistema nervoso. «Há mais de um século um microbiologista sugeriu que a saúde mental poderia ser protegida e a senilidade potencialmente retardada se a microbiota intestinal fosse manipulada através da alimentação», conta Patrícia Oliveira-Silva, revelando que «a forma mais eficaz de manipular a microbiota intestinal é oferecer determinadas bactérias ao hospedeiro, por exemplo, aquelas que são encontradas no iogurte, kefir ou kombucha. Os resultados preliminares até ao momento têm nos motivado a manter essa linha de investigação aberta. Mas ainda há muito a ser explorado e muito por descobrir».