Estão frustrados, indignados e, sobretudo, apreensivos. São jovens e estão prontos a trabalhar na área com que sonharam poder fazer a diferença, não fosse a impossibilidade em, literalmente, darem o primeiro passo nesse sentido. Sem estágio, parece não haver profissão e, sem profissão, não há Nutrição. Estará toda uma fornada de recém-licenciados refém de um novo Estatuto que foi desenhado, em teoria, para o seu próprio benefício?
O cenário é complexo, uma vez que, sozinha, a Ordem dos Nutricionistas (ON) não pode alterar o seu Estatuto, já que essa decisão passa pela aprovação do Parlamento. Como aconteceu, recorde-se, no ano passado, quando as várias Ordens Profissionais viram os seus Estatutos alterados. A nova Direção da ON, eleita em outubro de 2023, não redigiu o documento e rejeita-o, mas tem agora a obrigação de o fazer cumprir até, idealmente, o contornar.
Existe uma alternativa ao estágio – o período formativo – que não se encontra aberto. Por isso, entre um estágio profissional remunerado difícil de encontrar e uma formação (assegurada pela ON) no vazio, são os mais jovens que sentem na pele o fosso de oportunidades relativamente aos seus antecessores mais velhos.
“A falta de respostas é agoniante”
Coletivamente, somos muitas coisas, mas acima de tudo, somos o nosso contexto. É ele quem nos empurra ou nos puxa para trás, nas mais diversas áreas da nossa vida. Que o diga Sofia Veiga, com 29 anos, recém-formada e desejosa de poder vestir a pele de nutricionista numa cidade que a obrigou a ser paciente.
À VIVER SAUDÁVEL (VS), revela ter escolhido a Nutrição há vários anos: “sempre foi a licenciatura que sonhei tirar”, conta-nos, por email. Um sonho adiado, já que o curso com que idealizou a vida académica era uma total nulidade na sua região, como em tantas outras. Quando a Nutrição chegou, finalmente, a Braga, decidiu avançar.
Com uma patologia intestinal, cedo percebeu que alterações aos hábitos alimentares “podem trazer mudanças incríveis e melhorar a qualidade de vida”. A partir daí, passou a desejar poder ajudar os outros. Assim, concluiu a formação de quatro anos, sempre como trabalhadora-estudante – um cenário “muito difícil”. Por isso mesmo, sente-se “frustrada” e admite que “a falta de respostas é agoniante” e lhe “causa muita instabilidade”. Quer “recuperar o investimento financeiro” realizado na universidade, ao “poder exercer a profissão” que escolheu.
Frustração foi também a palavra usada por Mariana Pacheco, 22 anos, para descrever o que sente em relação ao processo de ingressão na sua Ordem. É que, tal como Sofia, não encontra um estágio profissional que cumpra os critérios de remuneração estipulados e que lhe permita ser membro de pleno direito da ON. “Este impasse causa-me grande preocupação em relação ao meu futuro profissional”, diz a recém-licenciada.
Sempre demonstrou “grande afinidade pela área da Saúde”, mas como é “bastante sensível a tudo o que envolve sangue e sofrimento”, encontrou na Nutrição uma área fundamental neste campo, e que se alinha com os seus “interesses e limitações”. Como nutricionista, acredita poder “contribuir para o bem-estar das pessoas”, de uma forma que considera gratificante. A vontade e o conhecimento, adquirido na Universidade do Algarve (é natural de Torres Novas) estão lá, falta-lhe apenas uma oportunidade, “após quatro anos de dedicação e estudo”.
“Serei obrigada a abandonar a profissão”
O relato de Vera (nome fictício) vai mais longe e coloca em causa a permanência na área. “Para mim, é um pesadelo. Sei que para os meus colegas de curso também. Serei obrigada, em breve, a abandonar a profissão porque preciso de trabalhar e não posso ficar em casa à espera de um desfecho final”, confidencia esta jovem de 23 anos, recém-formada na Escola Superior de Saúde e Tecnologia de Lisboa, e que optou pelo anonimato.
Revela que sempre adorou estudar e que, academicamente, agrega bastante valor científico. Mesmo assim, “de nada serve” quando nem entrar na sua Ordem lhe parece exequível. “Já coloco a hipótese, a longo prazo, de mudar completamente de área, porque não vejo futuro em Portugal com estas dificuldades”, continua, sentindo-se “desmotivada com a profissão”, sem a poder praticar. Ainda que se tenha sentido “profundamente realizada durante o estágio curricular” e assegure que “faria a diferença, caso conseguisse exercer na área”.
“Sinto que este processo está a criar todo um impasse no que diz respeito ao acesso à profissão”, resume Gabriela Silvestre, 25 anos, recém-licenciada pela Escola Superior de Saúde de Leiria, a sua localidade. Esta é, na verdade, a sua segunda formação, pois já se havia licenciado em Desporto, Condição Física e Saúde.
Quis mais, e escolheu a Nutrição, depois de um médico lhe ter apontado um quadro típico de Síndrome do Intestino Irritável. A partir daí, passou a ter como missão “disseminar o conhecimento sobre esta e muitas outras condições, promovendo a saúde e prevenindo o aparecimento ou agravamento de estados de doença”. O seu principal compromisso com a comunidade “foca-se em auxiliar na transformação através da mudança de comportamentos alimentares e da prática de exercício físico sustentáveis”.
“Poderemos assistir a uma redução de competências”
Contactada pela VS, a presidente da Associação Nacional de Estudantes de Nutrição (ANEN), Maria Manuel Velosa, afirma que as “dificuldades previstas na obtenção de um estágio profissional nos moldes estabelecidos poderão resultar numa redução do interesse e aptidão para a inscrição dos recém-licenciados na ON”.
A representante dos futuros profissionais receia que a manutenção desta obrigatoriedade resulte numa redução do número de nutricionistas. “Considerando que os conhecimentos de um licenciado em Nutrição vão muito além do que está previsto no Ato do Nutricionista, poderemos vir a assistir a uma redução das competências atribuíveis aos nutricionistas, exercidas por indivíduos que possuem o conhecimento, mas não o título”, explica.
Face ao problema, a ANEN redigiu a moção “Estágio de Acesso à Profissão: Uma barreira à Juventude”, um documento que se encontra alinhado com o posicionamento da atual Direção da ON e que conta com a subscrição de mais de 250 estudantes, recém-licenciados, nutricionistas estagiários e efetivos.
Hasteada a bandeira, a ANEN empenhou-se em apresentar a sua moção aos decisores políticos, tendo já reunido com os grupos parlamentares do PSD, PS e IL. A Associação reforçou ainda este interesse junto da Secretaria de Estado da Saúde, “numa reunião presencial, decorrente da parceria institucional com a Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde”. Ainda assim, a ANEN reitera a sua “preocupação face à inexistência de uma alternativa para os estudantes que terminam a sua Licenciatura este ano”.
“É inquestionável que o novo Estatuto facilita o acesso à profissão”
Alexandra Bento, bastonária por mais de 10 anos e responsável pelo Estatuto em vigor, garante que o documento trouxe “mais flexibilidade no acesso à profissão de nutricionista e maior abrangência às opções que a atual Direção da ON pode operacionalizar”. Isto porque, não só existe a opção de um estágio profissional remunerado, “em igualdade para todas as profissões reguladas”, como ainda um período formativo, “organizado pela Ordem”.
Este período, também de seis meses, tal como o estágio, deve garantir “que não há sobreposição com as matérias ou unidades curriculares da formação académica” e ser “disponibilizado em formato presencial e na modalidade de ensino à distância”. Os nutricionistas “não terão que pagar mais por isso” e serão dotados de “outros conhecimentos, capacidades e competências, tornando-os mais aptos para o ingresso no mercado de trabalho”. No final, os jovens passam a membros efetivos, “mediante a realização das devidas provas”.
“Estes dois modelos podem funcionar em simultâneo, o que não é inédito, visto que outras Ordens já o fizeram”, explica. Ou seja, em suma, e de acordo com o atual Estatuto, os jovens deveriam poder passar a membro efetivo, ora via ingresso no mercado de trabalho, ora via período formativo (“com temas que podem ir desde a capacitação profissional para o novo mercado de trabalho, o processo de autoconhecimento, a empregabilidade, orientação para entrevista de emprego e para a elaboração assertiva do curriculum vitae, comunicação, ferramentas de gestão, case studies nas diversas áreas da profissão, entre muitos outros temas”).
A atual coordenadora do Departamento de Alimentação e Nutrição do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) sublinha ainda que o novo Estatuto “prevê a isenção do pagamento de quaisquer taxas relativas ao acesso à profissão, em caso de carência económica comprovada”. Neste cenário, atesta ser “inquestionável que o novo Estatuto facilita o acesso à profissão”. Em contrapartida, “o que não tem ocorrido é o desenvolvimento das necessárias ações que conduzam à sua implementação”. A anterior responsável pelos destinos da ON aponta a falta de “iniciativa para salvaguardar os mais jovens e acautelar as dificuldades que enfrentam”. Em concordância, admite acompanhar “com preocupação o rumo que está a ser seguido pela atual Direção”.
Período formativo foi “desconsiderado pela atual Direção”
“O período formativo está consagrado como mais uma via possível para o acesso à profissão e, por esse motivo, deve ser valorizado. Mas até agora, foi totalmente desconsiderado pela atual Direção”, acrescenta Alexandra Bento, ao lembrar que esta colocou em consulta pública o regulamento de estágios profissionais, onde referia ter entendido “não prever a respetiva consumação por inexistência de condições para o efeito”. “Ora, atendendo que tal consumação só depende da própria Ordem, quais podem ser as condições que referem não existir?”, questiona, para a atestar que o funcionamento deste período “nem sequer se reveste de grande complexidade organizacional” e que este não é inédito, pois é praticado por outras Associações Públicas Profissionais.
“Receio que se esteja a contribuir para o fechamento da profissão. Espero que ainda estejamos a tempo de o prever no regulamento de estágio aquando da sua aprovação ou, no limite, que o Ministério da Saúde, enquanto tutela da Ordem, faça incluir este período formativo, no cumprimento do previsto em Estatuto, protegendo os jovens que querem aceder à profissão”, diz ainda. “Não se pode impedir os mais jovens, que estudaram e sonharam ser nutricionistas, de o poder ser”, pede.
O período formativo seria então uma alternativa, proporcionada pela ON, aos jovens que hoje não são capazes de encontrar um estágio profissional remunerado. Mas mesmo nesta opção há ainda muito por fazer, acredita. “Urge definir um protocolo com o Ministério da Saúde para estágios de acesso à profissão, num modelo idêntico ao do internato médico. É premente estabelecer protocolos com todas as novas Unidades Locais de Saúde, sabendo que estas têm mecanismos mais ágeis para a contratação. De tudo quanto vejo e acompanho, estas ações ainda não se encontram em curso”, refere. Os protocolos, diz ainda, não podem “dificultar o acesso”.
Finalmente, a anterior bastonária e fundadora da ON salienta a “oportunidade perdida” com a introdução dos cheques-nutricionista. “Esta medida tem um impacto financeiro em 2024 de 750 mil euros, e em 2025 de 1,875 milhões de euros. Seria uma excelente medida se tivesse sido desenhada a pensar nos mais jovens, permitindo com ela o acesso à profissão a mais de 100 nutricionistas estagiários em 2024 e a mais de 300 em 2025”. Quem regula “tem que ser ágil, tem que ter um rumo muito bem traçado e não perder oportunidades”, refere.
Formação seria, para já, “irresponsável”
Dificuldades na obtenção de estágios remunerados em Nutrição, sempre houve, acredita Liliana Sousa, atual bastonária da ON. Pois então, se sempre houve, então a sua obrigatoriedade veio agudizar este cenário, acredita. À VS, conta que desde o início do mandato começou a procurar soluções, apesar de acreditar que o caso era, à partida, bicudo: por um lado, retirar esta obrigatoriedade poderia ser visto como uma atitude “facilitista”, por outro “a Ordem não pode ser um obstáculo a este mesmo acesso”. Crê que “a profissão pode estar em risco”.
A queda do Governo não ajudou, admite. Mas procurou dialogar com a nova ministra da Saúde. A questão com que se depara é: “mas então, se o Estatuto esteve em revisão, porque não fizeram a alteração nessa altura?”. Para a bastonária, a pergunta mostra que, efetivamente, teria sido mais fácil. “Não tenho resposta a dar relativamente ao racional que fez com que a anterior Direção não tenha feito a mesma leitura”, confidencia.
“A senhora ministra mostrou-se sensível” ao problema. Contudo, meses passaram-se e a questão tem hoje mais peso que nunca, agora que os jovens já terminaram as suas formações. Por isso, a ON decidiu pedir uma audiência à Comissão Parlamentar da Saúde, ainda sem uma data. Liliana Sousa quer fazer ver aos deputados que os recém-licenciados necessitam de uma revisão excecional urgente do Estatuto, neste campo específico.
“Nós temos a noção de que era pelo estágio que tínhamos de começar”, com o investimento em novos protocolos ou na retoma daqueles que, entretanto, haviam caído, afirma, quando questionada acerca da alternativa que os jovens poderiam encontrar junto da sua Ordem, através de um período formativo. Contudo, explica que o período formativo deveria “passar por uma aprovação do Conselho de Supervisão”, que não existia (o órgão foi apenas eleito em julho). Além disso, esta alternativa também necessitaria de “um parecer da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior”, acrescenta.
De qualquer das formas, Liliana Sousa reitera que a Ordem “não tinha e não tem ainda uma estrutura formativa que pudesse ser aproveitada com este objetivo”, já que ultrapassa a capacidade das ações realizadas atualmente. “Assumirmos neste momento a constituição de um período formativo” seria, então, “irresponsável” mas, ainda assim, as bases já começaram a ser construídas e deverão estar ativas em 2025.
“Findo o estágio, os colegas desaparecem”
Eleita em outubro passado, Liliana Sousa garante que os estágios profissionais são uma forma de os mais jovens encontrarem um emprego e, assim, iniciarem a sua atividade profissional. No entanto, a bastonária lamenta que o estágio profissional seja uma forma de a ON agarrar os jovens, numa fase inicial, sem capacidade de os continuar a acompanhar. “Findo o estágio, os colegas desaparecem. Perdemo-los, não sabemos para onde foram, se têm emprego ou não”, conta, desejando que a Ordem seja cada vez mais uma porta onde os nutricionistas podem bater para procurar emprego ou formação complementar.
A sua intenção é, por isso, acabar com a obrigatoriedade de um estágio profissional remunerado e apostar, por exemplo, nos estágios curriculares. “Os cursos evoluíram ao longo destes 10 anos”, pelo que os jovens saem hoje das instituições de Ensino Superior mais capazes de começar a exercer a sua profissão. Um estágio curricular, recorrente nas várias instituições onde a Nutrição é lecionada, poderia então servir para ingresso.
Contudo, cada instituição tem os seus currículos e tempos de estágio, algo sobre o qual a ON não tem qualquer autoridade, apesar de “alguns diretores” terem “exatamente a mesma visão” da atual Direção neste campo de acesso à Ordem, que está disponível para colaborar “na elaboração, revisão ou adaptação de alguns estágios”.
Há pouco tempo responsável pelos nutricionistas, Liliana Sousa admite que “dói muito” ouvir e ler os testemunhos que vai conhecendo de jovens que consideram deixar a profissão. É “dever” do Estado ter uma postura recetora para resolver a situação, nomeadamente ao assumir parte dos estágios nos seus variados domínios (do SNS às autarquias ou mesmo na área da Defesa). Uma espécie de internato de Nutrição, como referiu Alexandra Bento, é também uma vontade sua. Mas sabe que esse será um percurso longo e trabalhoso.
“As profissões não são estáticas”
O processo de revisão dos estatutos das Ordens Profissionais foi apertado, devido à pressa em corresponder à vontade da União Europeia e, assim, garantir acesso a fundos do PRR, o que levou a um sentimento de pressão num processo que se queria tranquilo. Alexandra Bento sabe-o, pois teve de lidar com a urgência de aprovação de um novo Estatuto, tal qual todos os bastonários. E Liliana Sousa reconhece-o, ao afirmar que a temática é “demasiado relevante, fraturante e estruturante para ser usada como moeda de troca” pelo anterior Governo.
Neste contexto, é então vontade da atual Direção da ON alterar o Estatuto. A ANEN vai no mesmo sentido – considera que “não é só fundamental, como deverá ser realizada com a maior brevidade possível” – e a própria responsável pelo documento, Alexandra Bento, não coloca qualquer entrave, uma vez que “as profissões não são estáticas”, pelo que “a sua constante avaliação é muito desejável”.
“Se algum dia for entendido como melhor para a profissão e para a população retirar o estágio profissional para o acesso à profissão, retire-se, o que deve pressupor nomeadamente uma consulta aos membros e uma aprovação pelos Órgãos competentes da Ordem”, acrescenta, sem esquecer que a remuneração dignifica os jovens e que “quem trabalhar com este instrumento [o Estatuto] tem que o saber usar devidamente”.
Durante anos, Sofia, Mariana, Vera e Gabriela perspetivaram um futuro onde a Nutrição e a alimentação seriam um desígnio. Perante a pescadinha de rabo na boca, ficam em águas de bacalhau, presumivelmente, até 2025.