A maldição dos Kennedy 859

Por Rodrigo Abreu, Nutricionista na Rodrigo Abreu & Associados e Fundador do Atelier de Nutrição®

 

Nos Estados Unidos da América, República Federal desde a sua fundação no século XVIII, os Kennedy são uma espécie de família real. O patriarca, Joseph P. Kennedy, empresário e embaixador americano no Reino Unido, teve 9 filhos com Rose Elizabeth Fitzgerald, e desde logo uma espécie de maldição pareceu ensombrar o clã. O filho mais velho do casal, Joseph P. Kennedy Jr. morreu durante a 2ª Guerra Mundial, abatido no bombardeiro que pilotava sobre os céus da Inglaterra. O seu irmão, John (JFK), ficou eternamente conhecido pelo assassinato em Dallas, já depois de eleito presidente da nação mais poderosa do Mundo. Outro dos irmãos, Robert, morreria também assassinado, desta vez em Los Angeles, depois de vencer as primárias do Partido Democrata na Califórnia. Uma geração depois, John F. Kennedy Jr., filho de JFK, morre num acidente de aviação, aos comandos da aeronave que ele próprio pilotava. As mortes prematuras e os acontecimentos dramáticos entre o clã Kennedy, originaram aquilo que em 1969 Edward “Ted” Kennedy, um dos irmãos de JKF, designaria por “maldição dos Kennedy”.

Vem isto a propósito de um outro Kennedy, o sobrinho de JFK, Robert F. Kennedy Jr., atual Secretário de Saúde e Serviços Humanos dos EUA. Advogado, notabilizou-se nos anos 1990 e 2000 pelas suas atividades em Direito Ambiental, mas recentemente tornou-se mais conhecido pelas posições anti vacinas, nomeadamente na sequência da pandemia global de COVID-19. Robert Kennedy, que chegou a tentar concorrer às Presidenciais de 2024 pelo partido Democrata, acabaria por ser convidado por Donald Trump para as atuais funções e, desde logo, afirmou que queria tornar a América saudável outra vez – Make America Healthy Again, numa óbvia colagem ao Make America Great Again de Trump. Neste seu manifesto, Kennedy põe uma forte tónica na importância da alimentação saudável e defende medidas com as quais muitos nutricionistas podem concordar: “If we just gave good food, three meals a day, to every man, woman and child in our country, we could solve the obesity and diabetes epidemic overnight.”.

Algumas das reivindicações de Kennedy passam por reduzir ou restringir o tipo de aditivos alimentares usados nos EUA, adotando critérios similares aos do Canadá ou União Europeia. Também não concorda com a comparticipação do semaglutido para perda de peso (através dos programas Medicare e Medicaid), fomentando, ao invés, a adoção de uma dieta mais saudável e prática de atividade física. Parecem opiniões razoáveis do ponto de vista da Saúde Pública e da promoção da alimentação saudável. Aliás, deste lado do Atlântico, ouvimos frequentemente mensagens similares. Mas, com os anticorpos que a administração Trump gera um pouco por todo o lado, e dado o histórico de Kennedy em posições anticientíficas (como no caso das vacinas), como ficará a credibilidade de mensagens relacionadas com a promoção de uma alimentação saudável?

Para alguém mais esclarecido do ponto de vista cientifico, é relativamente fácil apontar as incoerências no discurso e ações de alguém como Robert F. Kennedy. Mas, para o público em geral, pode ser difícil distinguir as mensagens simplistas, óbvias e, na sua essência, corretas (por exemplo, “fazer uma alimentação saudável pode prevenir ou tratar a obesidade e a diabetes”) das afirmações falsas alinhadas numa narrativa populista (como a demonização das vacinas). O resultado desta mistura de verdades e mentiras é a polarização das opiniões e a contaminação da literacia em saúde. Deixa de se avaliar a credibilidade da mensagem, para apenas acreditar ou duvidar do seu mensageiro. Talvez pessoas menos informadas, mas ferrenhamente “pró-Trump”, passem a valorizar uma alimentação saudável, da mesma forma que talvez pessoas mais esclarecidas, mas decididamente “anti-Trump”, passem a aceitar melhor tratamentos farmacológicos para a obesidade, em vez de valorizar o papel da alimentação… Como em todos os processos de “extremismo”, perde-se o bom senso. E, quando o mundo passa a ser preto ou branco, corre-se o risco de perder todas as nuances de cinzento que fundamentam as mensagens transmitidas pelos nutricionistas a cada um dos seus utentes. Será que a maldição dos Kennedy chegou também à Nutrição?